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Críticas

Cineplayers

Valendo-se de um personagem principal muito rico, defendido com garra pelo ator Terrence Howard (indicado ao Oscar), o filme passa seu recado.

6,0

Sejamos justos com o público de Sundance. Foi ele que, em primeiro lugar, já no início de 2005, percebeu as qualidades de Ritmo de um Sonho, ao considerá-lo o melhor filme daquele Festival (no qual bateu fortes concorrentes como Junebug, A Lula e a Baleia e Eu e Você e Todos Nós). De lá para cá, a fita veio forjando sua fama e conquistando elogios da crítica norte-americana, digamos, mais respeitada (leia-se, os jornalistas de Los Angeles e Nova Iorque). O ponto culminante deste sucesso veio com as indicações do filme a alguns dos principais prêmios de 2005, em especial, para a interpretação de Terrence Howard, lembrado tanto pela Academia quanto pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Agora, sete meses depois da sua estréia no circuito comercial americano, Ritmo de um Sonho chega ao público brasileiro para dar o seu recado.

O filme nos traz DJay, personagem defendido por Howard, como um cafetão de segunda categoria, já entrando na meia-idade, que perambula pelas ruas de Memphis, administrando seu negócio. Entenda-se por “negócio” o agenciamento de três prostitutas, com as quais mantém relacionamentos diferenciados: Nola (Taryn Manning), a mais nova delas, uma espécie de cópia de Jodie Foster em Taxi Driver e que vê em DJay a figura paterna; Shug (Taraji P. Henson), grávida de vários meses e, por isso mesmo, de folga temporária da profissão; e Lexus (Paula Jai Parker), com quem DJay está sempre em atrito, muito provavelmente por causa de um romance entre ambos, não muito bem resolvido.

Nas horas vagas, DJay complementa sua renda traficando drogas nos bares da cidade. É justamente durante uma entrega, que fica sabendo pelo segurança local que Skinny Black (Ludacris), um famoso cantor de rapp, visitará sua cidade no dia 4 de Julho próximo. DJay recebe a incumbência de, nesta data, fornecer uma encomenda mais sofisticada ao artista. Reconhecendo em Skinny um antigo amigo de escola, DJay vislumbra a possibilidade de mudar de vida. Para tanto, planeja entregar a ele uma fita demo, com algumas canções que sempre passaram pela sua mente mas que nunca teve coragem de colocar no papel. Dias depois, casualmente, DJay tromba numa vendinha com Key (Anthony Anderson), um outro colega de infância, com quem começa a dividir as tarefas de gravação. Mais tarde, junta-se a esta dupla um novo elemento, o tocador de órgão da igreja local, na pessoa do ator DJ Qualls.

O diretor Craig Brewer, também autor do roteiro, intencionalmente revela pouco do passado de DJay. Nada sabemos sobre sua família e como ele se iniciou nas atividades ilícitas. A única informação que nos é passada sobre a infância do personagem é seu gosto pela música, materializado no órgão de brinquedo (uma espécie de Rosebud de teclas), que um mendigo lhe vende na rua. O restante da caracterização é dada pelo próprio ator. Os gestos, a impostação de voz, o olhar, o dente de ouro. Tudo é trabalhado para que passemos a conhecer melhor aquele indivíduo e, mesmo reconhecendo suas evidentes falhas de caráter, ainda assim, torcer por ele.

A interpretação de Howard realmente é acima da média e é o ponto forte do filme. Ele representa tudo o que há de pior neste mundo: cafetão, traficante de drogas, violento no cotidiano doméstico (é capaz de expulsar uma de suas mulheres de casa, com filho e tudo). Ao mesmo tempo, conseguimos observar em seu semblante um homem sensível (ele chora ao ouvir uma canção na igreja) e que possui uma filosofia de vida toda própria (seu discurso inicial, dentro do carro). Ainda que de um jeito estranho, DJay demonstra uma preocupação sincera com suas mulheres. Além disso, pelo olhar tenso e ansioso, percebemos seu enorme e represado desejo de mudança. Ele encontrará na musica rapp  um modo de colocar para fora todas as suas insatisfações com a vida. Terrence Howard molda seu DJay em torno desse conflito entre o terno e o violento, entre o suave e o viril. A indicação da Academia está aí para provar que o ator saiu-se muito bem no desafio.

Outro elemento importante no filme são as canções de rapp. A crueza das letras, que abordam justamente as dificuldades do seu dia a dia (pagar o aluguel, ser cafetão etc.), servem para construir um pouco mais o personagem. Ao falar sobre estes problemas, DJay encontra um modo de expressar sua visão de mundo. Não é o meu gênero musical preferido, mas deve se reconhecer a veracidade e a urgência com que o recado é passado. Uma delas, aliás, It´s Hard Out Here For a Pimp, foi indicada ao Oscar.

Como diretor, Craig Brewer não inventa muito. Prefere ficar num segundo plano, deixando as atenções voltadas para seus personagens. Poucos movimentos de câmera mais ousados, a narrativa sempre privilegiando o conflito humano dos relacionamentos. Já como roteirista, Brewer arquiteta seu filme em três partes mais ou menos bem definidas: a apresentação dos personagens e ambientes principais, especialmente DJay, as três prostitutas e o anúncio da chegada de Skinny Black; o desenvolvimento da trama, a melhor delas, ocupada inteiramente pela gravação da fita demo; e, por último, a conclusão da história, na qual cada um dos envolvidos encontra um destino.

Senti um certa pressa de Brewer em passar da primeira para a segunda etapa. O encontro de DJay com Key, que marca essa migração, é casual demais. E, considerando que eles não se viam há tanto tempo, o início da parceria me pareceu muito apressado, sem qualquer conflito. Talvez isto possa ser explicado pelo fato de Key encontrar na gravação daquela fita um modo de fazer algo útil da sua vida, ao invés de ficar escutando sua esposa contando as futilidades do dia na mesa de jantar. Sob este aspecto, Key e DJay se aproximam nas motivações, o que fortalece bastante a união e, por tabela, todo o segundo ato do filme. Ainda assim, achei que Brewer poderia ter encontrado um meio mais verossímil para marcar a transposição.

Além disso, o desfecho me soou um pouco falso. Numa história de personagens marginais, a redenção não viria tão instantânea. Talvez seja pessimismo ou fatalismo em excesso. Ou preconceito, já que eu não estaria vislumbrando nessas pessoas a possibilidade da volta por cima, de uma segunda chance (tema dos mais caros ao cinema americano). Não sei. Penso apenas que um final mais cru, seco, algo mais próximo dos filmes do mexicano Iñarritu (Amores Brutos, 21 Gramas), seria mais coerente.

Não seria justo, aqui, mencionar o trabalho apenas de Howard. Não vamos esquecer que o Ritmo de um Sonho foi indicado, não sem razão, ao prêmio de melhor elenco ao Sindicato Americano dos Atores Profissionais (o SAG), sendo derrotado por Crash – No Limite. Howard divide a tela com outro atores do mesmo calibre e que contribuem imensamente para a veracidade daquele ambiente e situações. Destaco duas atrizes: a loira Taryn Manning, no papel de Nola, jovem de poucas palavras, que não sabe bem o que quer da vida, interpretando o objeto de troca de DJay; e, em especial, de Taraji P. Henson, na pele de Shug (ela encena um dos momentos mais intensos do filme, ao confrontar DJay durante a gravação de uma canção). Dentre as mulheres que rodeiam a vida da DJay, Shug é a que ele gosta de verdade. Há ainda outras participações importantes, como o cantor de rapp Ludacris (que, assim com Howard, também integra o elenco de Crash) e Isaac Hayes, um dos mestres do soul norte-americano.

Tendo como seu principal trunfo um protagonista rico, tridimensional, apresentado na tela com defeitos e virtudes, contraditório como todos os seres humanos, e, ainda por cima, defendido com garra e talento por um inspirado Terrence Howard, Ritmo de um Sonho passa seu recado.

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