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Críticas

Cineplayers

Luchino Visconti ficaria orgulhoso.

7,0

Na virada dos anos 50 para os 60, a Itália produzia o melhor cinema no mundo. Pertencem a essa fase os melhores trabalhos de Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Luchino Visconti, Dino Risi, Valerio Zurlini e Mauro Bolognini. Ironicamente, tanta qualidade, no longo prazo, pode ter sido prejudicial à Velha Bota. Quando a carreira desses cineastas começou a declinar, e a nova geração precisou assumir o espaço que se formou, um grande vazio apareceu. Com exceção de algum lampejo do brilhantismo do passado dos nomes já consagrados (como, por exemplo, Amarcord [idem, 1973]), nada de muito animador foi produzido na Itália durante as décadas de 70 e 80. Felizmente, esse cenário parece dar sinais de mudança com o surgimento de jovens diretores com uma nova proposta autoral. Integram a essa linhagem Gabrielle Muccino, Paolo Sorrentino, Daniele Luchetti, Michele Placido, Kim Rossi Stuart, Mateo Garrone e Saverio Constanzo. A esse grupo deve ser incluído o nome de Luca Guadagnino. Um Sonho de Amor (Io sono l'amore, 2009), seu terceiro longa-metragem, é ao mesmo tempo um resgate do cinema italiano do passado, obra claramente influenciada por Visconti, e uma bela história de libertação feminina. Olho nesse cara: pelo que demonstrou aqui, Guadagnino veio para ficar.

Milão. Inverno. Tomadas Externas. O branco da neve que cai sobre a cidade se opõe ao escuro das ruas e calçadas. Dos planos estáticos que nos mostram pontos conhecidos da região, aos poucos somos levados ao interior de um condomínio fechado. Uma espécie de fortaleza. Lá dentro uma grande festa está sendo preparada. É aniversário de Edoardo (Gabrielle Ferzetti), o patriarca da família Recchi, dono das maiores fábricas de tecelagem da Itália. Mas ele ainda não chegou e sua nora, Emma (Tilda Swinton), se apressa para ajustar todos os detalhes do encontro. Emma está tão envolvida na disposição dos lugares da mesa de jantar e na preparação dos alimentos que ela mais parece pertencer ao staff de cozinheiras e garçons do que ao clã dos Recchi.

Emma é casada com Tancredi (Pippo Delbono). A relação dos dois parece distante, fria. Ambos tem três filhos: Edoardo (Flávio Parenti), que está prestes a anunciar o noivado com Eva (Diane Fleri); Elisabetta (Alba Rohrwacher), que tem dúvidas sobre os sentimentos que nutre pelo seu namorado; e Gianluca (Mattia Zaccaro), o mais novo deles.

Durante o jantar, o velho Edoardo anuncia que está se retirando da administração da empresa. Ao contrário do que todos pensavam, ele anuncia que os negócios da família não serão exercidos isoladamente pelo seu filho Tancredi, que vinha se preparando para aquela função há anos, mas em conjunto com se neto Edoardo. “Dois homens devem fazer o meu trabalho!”, brada o chefe dos Recchi.

Logo após o jantar, o jovem Edoardo recebe a visita inesperada de Antonio, chef de cozinha de um restaurante, e que o havia vencido em uma competição esportiva naquela mesma tarde. Antonio lhe traz um presente, em reconhecimento à disputa limpa que ambos travaram horas antes. Edoardo o apresenta à sua mãe Emma e o convida para entrar, mas ele, envergonhado, prefere ir embora.

Meses se passam. A amizade de Edoardo e Antonio se fortalece. Antonio quer montar um restaurante na região de San Remo, onde reside. Enquanto ele não consegue transformar seu sonho em realidade, aceita o convite de Edoardo de preparar os jantares de negócio que a família promove de tempos em tempos. Isso faz com Antonio volte a cruzar com Emma. Ela fica sabendo do seu talento para a culinária. Ao experimentar um de seus pratos num jantar com a sogra, Emma se deixa levar por um devaneio erótico. Quando sua filha a convida para uma viagem próxima à região de San Remo, ela encontra a desculpa que precisava para provocar um encontro com Antonio. A improvável aproximação destes personagens será o principal ponto de conflito que conduzirá o restante da narrativa.

Pode-se dizer que Um Sonho de Amor são dois filmes em um, cada qual com seu tema bem definido: o primeiro, por onde a história começa, é mais geral, que parte dos integrantes da família Recchi para abordar as relações sociais e corporativas atuais (e não apenas na Itália); o segundo, que começa tomar corpo somente na segunda metade de projeção, trata do romance entre Emma e Antonio. Não é fácil para um filme explorar mais de um foco de narrativa. Normalmente, os roteiros preferem definir e se concentrar rapidamente na trama principal, até mesmo para conquistar a atenção do público com mais facilidade. Um Sonho de Amor faz uma aposta ousada e arriscada, de sustentar todos os seus temas até o fim. E, para a minha grata surpresa, ele se sai muito bem em ambas as propostas.

É praticamente impossível analisar a primeira metade de Um Sonho de Amor sem falar de Luchino Visconti. A influência que ele exerce no diretor Luca Guadagnino é nítida. A cidade envolta na neve que abre o filme nos remete à gelada e escura Livorno de Noites Brancas (La Notti Bianche, 1957). Os entretítulos que dividem a narrativa de acordo com a ambientação momentânea da história (Milão, San Remo e Londres) nos lembra Rocco e Seus Irmãos (Rocco e I Suoi Fratelli, 1960), que era dividido pelos nomes de cada um dos integrantes da família Parondi. Até os créditos iniciais, idealizados à moda antiga, com o uso das linhas pontilhadas e das chaves, parecem tiradas de O Leopardo (Il Gatopardo, 1963).

Falando em O Leopardo, parece ser daí que o diretor Guadagnino se inspira e desenvolve o primeiro de seus temas. No clássico de Visconti, ele falava das lentas e irreversíveis movimentações das estruturas sociais da Itália na época do Risorgimento (1860). O Príncipe Salinas, personagem de Burt Lancaster, é o primeiro a perceber que a aristocracia que ele personifica está próxima do fim. De forma quase imperceptível, uma nova classe surge, bronca, pouco letrada, mas endinheirada e, por isso mesmo, pronta para assumir esse espaço: a burguesia. Ao ouvir de seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) a famosa frase que é preciso que as coisas mudem de lugar para que fiquem como estão, Salinas começa a arquitetar um plano para manter inalterada sua posição social.

Na essência, é disso que se trata Um Sonho de Amor. A família Recchi não deixa de ser uma extensão dos Salinas. Eles representam a aristocracia. Estão no topo da pirâmide social da Itália. São ricos até não mais poder. Mas Tancredi (de novo, a aproximação com O Leopardo), ao ser nomeado pelo pai como o novo administrador dos negócios, é o primeiro a perceber uma modificação do cenário. O filme não nos dá essa informação, mas é possível assumir que estamos no meio da crise econômica da Europa. Riscos concretos de quebra, de falência, do fim de uma família. Há um investidor vindo do mundo árabe interessado na sua empresa. Tancredi a oferece em troca de um bom dinheiro, capaz de manter intacta a posição social dos Recchi para o resto das suas vidas. Seu filho Edoardo é pego de surpresa. Ele representa o respeito aos valores e princípios familiares. O sonho e o trabalho do seu avô são bens inegociáveis. Para Tancredi, no entanto, o apego às tradições poder ser uma virtude das mais elogiáveis, mas não enche a barriga de ninguém. Assim como o Príncipe Salinas, ele não quer que o tempo dos leopardos e dos lobos deem lugar aos dos lobos e dos chacais. A ordem e a hora é de mudar para que tudo permaneça como está.

O segundo tema de Um Sonho de Amor é voltado inteiramente à Emma. Russa de nascimento, ela conheceu Tancredi quando este fazia uma visita de negócios à sua região. Casaram-se e mudaram-se para a Itália. Mas como uma mera agregada, Emma nunca se sentiu parte da família. Ela sempre soube que os Recchi nunca a considerariam como um membro de sangue. O tempo foi passando e Emma, se deixando levar por um casamento frio, distante, sem paixão. Ambos permanecem unidos apenas pelas aparências. No quarto, antes de descerem para a festa do velho Edoardo, não se esquecem de recolocar as alianças que, no dia a dia, ficam guardadas nas gavetas. Emma perdeu até mesmo sua própria identidade, já que nem mesmo seu nome russo de batismo ela se lembra direito.

Essa sensação de isolamento e de aprisionamento da personagem é bem dramatizada pelos vãos livres dos amplos salões e corredores da mansão em que reside. É perceptível também pelo seu desconforto durante o jantar de aniversário do patriarca Edoardo, a quem ela parece querer agradar constantemente. Ao final da festa, deslocada, Emma prefere se recolher ao seu quarto em vez de se reunir com restante da família na sala de estar. Mais à frente, quando já está se envolvendo com Antonio, Emma observa uma mariposa se debatendo no abajur do seu quarto. Ela não faz nenhum gesto para espantá-la. Apenas a observa. Em certo sentido, ela se identifica com aquele inseto, admira sua tentativa de fuga, sua ânsia por liberdade, mas ao mesmo tempo sabe o quão inglória e perdida é aquela luta.

Guadagnino faz também um interessante jogo entre o Emma e sua filha. A certa altura do filme, Betta revela uma paixão secreta para a mãe. Numa primeiro momento, Emma não entende a real dimensão daquele amor, mas respeita a opinião da garota. Em seguida, quando já esta apaixonada por Antonio, ela vê as fotos da sua filha ao lado da pessoa amada. Por mais que aquele relacionamento seja contrário aos padrões impostos pela sociedade – e em especial pela família Recchi -, a única coisa que Emma enxerga é uma mulher plenamente feliz com suas escolhas. A mãe chora. Naquele instante, ela compreende exatamente a extensão do sentimento de que a filha lhe confessara. Ela entende Betta perfeitamente. Betta está livre. O símbolo desta liberdade vem singelamente representado no corte curto de cabelo. Emma quer o mesmo para si e não é à toa que seu primeiro gesto é repetir a atitude da filha e colocar a tesoura para funcionar. Um Sonho de Amor é um dos poucos filmes que aprendeu a lição de expressar o que está na cabeça dos personagens não pelo que eles falam, mas pelo que eles fazem.

O rosto mais conhecido do elenco é o de Tilda Swinton (que, inclusive, é uma das produtoras da fita). Tilda é uma espécie de combinação da experiência e da técnica de Vanessa Redgrave, Meryl Streep e Deborah Kerr. Seu rosto andrógino e robótico a tornava perfeita para personagens típicos de filmes de arte, tais como Orlando, a Mulher Imortal (Orlando, 1992) e Eduardo II (Edward II, 1991). Seu nome se tornou mais conhecido após o Oscar por Conduta de Risco (Michael Clayton, 2007) e se consolidou com o grande público após sua participação em Queime Depois de Ler (Burn Ater Reading, 2008) e O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, 2008), que está longe de  ser um de seus melhores trabalhos. Esteve excelente no bom mas pouco visto Julia (idem, 2008), de Erik Zonca, que tinha pontos semelhantes com Gloria (idem, 1980). Agora, em Um Sonho de Amor, Tilda volta a dominar a cena, e o faz aos poucos, à medida em que seu personagem vai aumentando de importância ao longo da história. Na primeira metade do filme, seus gestos, seus olhares, seu sorriso nervoso, revelam a sensação de não pertencer àquele universo familiar fechado. Na segunda, essa mesma técnica servirá para nos transmitir o desejo – que se transforma em obsessão – pela liberdade. Um Sonho de Amor sem Tilda Swinton sequer existiria.

O restante do elenco é formado por atores italianos pouco conhecidos no Brasil. Os destaques vão para o veterano Gabrielle Ferzetti, que fazia o vilão de Era uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West, 1968), e Marisa Berenson, como sua esposa vaidosa e competitiva, que teve participações importantes em Cabaret (idem, 1972) e Barry Lyndon (idem, 1975).

A direção é de Luca Guardagnino. De um carreira sem grande brilhantismo, quase toda formada por documentários, ele surpreende na mise-en-scène, nas simbologias e nos achados visuais. Sua câmera está em constante movimento. Nos planos estáticos, os ângulos dos quais ele filme são sempre originais, sem parecer presunçoso. Duas sequências chamam a atenção: na primeira, a câmera acompanha Emma por um corredor, em seguida por uma escada, e  finaliza na cozinha em que Antonio prepara os pratos para o jantar dos Recchi. E a outra, quando Guardagnino filma Emma andando pelas ruas de San Remo em plongee e em contra-plongee numa mesma sequência. Uma prova de que a mão do diretor faz toda a diferença, basta comparar Um Sonho de Amor com Que Mais Posso Querer (Cosa Voglio di Piu, 2010), de Silvio Soldini, e que trata de forma quadrada do mesmo tema.

Seja por resgatar o melhor do cinema italiano do passado, seja por dar um tratamento bastante original a um assunto já bastante explorado, Um Sonho de Amor é um dos melhores filmes a serem exibidos no circuito brasileiro em 2011.

Comentários (3)

Bruno Kühl | sexta-feira, 26 de Agosto de 2011 - 18:30

Um 7,0 do Régis já vale a sessão! 😋
Fiquei curioso pelo filme, ainda mais pela Tilda-cara-pálida...

Patrick Corrêa | quarta-feira, 07 de Setembro de 2011 - 20:38

Belo texto!
Concordo com tudo, menos com a nota.
Eu dou um 9 com gosto.

Rosana Botafogo | quarta-feira, 05 de Junho de 2013 - 20:19

Excelente crítica, o fime não me agradou, mas a sua analise foi tão detalhada e completa, que me fez observar fatos e situações que tinham passado depercebidos... parabéns...

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