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Críticas

Cineplayers

A obra máxima de Dario Argento.

9,0

O mais metalingüístico cinema. E não são poucos os fatores que transformam Tenebre, um dos grandes momentos da carreira de Dario Argento, num jogo completamente debruçado sobre esta técnica que, de modo ainda tímido, aparecia em alguns de seus trabalhos anteriores – como em  Prelúdio Para Matar. Logo na primeira cena Argento já apresenta muito sobre o filme, com o assassino de luvas negras lendo trechos do livro que posteriormente será inspiração para as mortes que sucedem a chegada do escritor do livro Tenebrae à capital da Itália, onde participará de uma série de entrevistas para divulgar seu trabalho.

A antecipação da trama já demonstra uma clara referência metalingüística, mas os exemplos jorram de forma tão intensa quanto o sangue que percorre cada fotograma demoníaco deste retorno de Argento aos giallos, gênero que transformou o novato cineasta, nos anos 70, em um mito do Cinema de suspense/horror italiano. A câmera subjetiva, em especial, ensaiada em alguns planos de Prelúdio Para Matar ou na fraca Trilogia dos Bichos – em ambos os casos sem realmente fazer parte de um contexto, servindo mais como propulsora de tensão em seqüências específicas -, ganha significado imprescindível dentro da trama e do esquema de manipulação argentiano.

Depois de dois assassinatos e meia-hora de filme, o recurso torna-se tão indissolúvel da decupagem que passa a confundir a cada plano a percepção do espectador, criando uma dúvida insolucionável em relação à origem da imagem [assassino?, plano de visão extra-diegética?, protagonista?, enfim, impossível prever]. E sempre que visivelmente parte do ângulo de visão do responsável pelas mortes, que tem sua identidade ocultada – e confundida – o tempo todo, a utilização do recurso é excepcional – nivelada com De Palma, pra se ter uma noção, talvez o grande exemplo a ser citado de uma forma geral.

Mas a metalinguagem não para por aí. Quando as coisas começam a apertar para os heróis argentianos, assim como em Hitchcock, De Palma e seus seguidores, normalmente é ele mesmo quem inicia uma investigação por conta própria pra tentar tirar o seu da reta. Mas o escritor de Tenebre, enquanto ainda faz parte do grupo de espectadores dos assassinatos, permanece o tempo todo de fora, ao lado de quem vê e, inteligentemente, devido a um jogo de noção de trama absoluto de Argento, investiga, antes mesmo de os personagens começarem a fazer o mesmo – as pistas sempre chegam antes a nós do que ao moleque que faz as vezes de investigador e do próprio investigador, ninguém mais ninguém menos que o icônico Giuliano Gemma.

SPOILER NESTE PARÁGRAFO
Mesmo assim, a grande e genial sacada metalingüística de Argento é transformar o próprio protagonista em roteirista da trama no terceiro ato (o que, curiosamente, não deixa de ser uma obsessão bem expressiva de alguém que escreve estórias policiais para a literatura), passando-o de espectador a protagonista, a assassino, quando dá início a uma série inexplicável de renovações de enredo e brincando como uma criança hiperativa com seu próprio filme – a resolução do mistério é concluída meia-hora antes de tudo efetivamente terminar, e não há possibilidades de se adiantar a loucura que é acompanhar os vai-e-vens que sucedem antes de os créditos finais começarem a baixar na tela, aos sons rasgantes dos gritos de uma das personagens embalados pela trilha de Goblin.

Analisando Tenebre é até fácil compreender os motivos que fizeram Argento ter retornado, depois de seis anos, ao gênero que havia lhe transformado em ícone, depois de iniciar sua empreitada pelo suspense sobrenatural com Suspiria e Mansão do Inferno. Prelúdio Para Matar era o mais próximo que Argento havia chegado de construir uma obra definitiva para o gênero, mas o desequilíbrio narrativo – algumas seqüências fazem parte do grupo de coisas mais fantásticas já filmadas, outras entretanto transmitem uma leve sensação de encheção de linguiça – deixava o resultado final, embora verdadeiramente fantástico, insuficiente. Tenebre viria pra lacrar os equívocos em uma caixa de metal blindado e atirá-los no fundo do mar.

E, mesmo que a trilha sonora, embora marcante e com um belo clima de suspense, não seja tão impactante/importante quanto aquela coisa inexplicável de Prelúdio Para Matar, as cenas de morte em Tenebre alcançam um grau de grafismo ainda maior – talvez por manterem um crescendo muito bem arquitetado e estourarem de vez ao nível da doenticidade na meia-hora final, quando todos os personagens aparecem em determinado local ao mesmo tempo somente para serem vítimas de uma alucinante brincadeira de resta-um. Aliás, não tem pra ninguém: a morte da americana que perde o braço com uma machadada é a maior do cinema, por aquele lance genial de ela levantar com uma coreografia incrível e manchar a parede de maneira única com um jorro incontrolável de sangue.

E o que dizer daquele plano-seqüência irrealizável que Argento utiliza como prelúdio da morte das lésbicas, saindo com a câmera de uma janela, dando a volta no sentido vertical em toda a casa, atravessando o telhado, descendo pelo lado contrário e parando em outra janela, que começaria a ser rebentada pelo assassino? E da excepcional sacada leonística com as memórias atiradas de forma desconexa dentro da trama, mas deixando o espectador ter ciência de que são memórias mesmo, para explicar certo fato do final? E o último assassinato, um encerramento de filme perfeito, sangrento e totalmente pessimista, deixando viva a única personagem que não fez nada durante todo o filme e que, por isso mesmo, merecia ter morrido antes de qualquer outro? Aqueles gritos ecoam na sala por muito tempo - e deixam a certeza de que Tenebre é uma obra-prima.

Comentários (1)

Fabiano Chinaski | quinta-feira, 17 de Maio de 2012 - 12:43

Prefiro Profondo Rosso tanto do ponto de vista estético quanto na construção da trama. A transição do pictórico para o fílmico é excelente, regida por aquela trilha de rock progressivo. Muito interessante aquela a ideia de "a resposta já estava dada desde o início", algo que em certa medida também aparece em Tenebre. No último, acho um tanto rocambolesco o final. Consigo aceitá-lo apenas no plano metalinguístico que falou: um autor tentando ultrapassar a recepção de sua obra, colocá-la a frente daquilo que fizeram dela, dar outro sentido outro fim,etc. Reconheço essa mise en abyme nessa obra em moto contínuo. Porém....

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