Lynchianismos não são facilmente apreciados – tampouco compreendidos – pelo grande público. As marcas pessoais de David Lynch são, muitas vezes, taxadas de incoerências ou bizarrices desnecessárias, e é em Cidade dos Sonhos que seu polêmico estilo atinge o espectador como uma marreta: há uma estrondosa reviravolta em seus últimos vinte minutos de duração, deixando boa parte do público perplexa. Mas Lynch não é irresponsável e injeta no filme todas as informações necessárias para a sua compreensão.
No longa, a excelente Naomi Watts é Betty, uma aspirante a atriz recém-chegada à Los Angeles que hospeda-se na casa de sua tia para tentar construir uma carreira em Hollywood. Na casa, no entanto, Betty conhece Rita (Laura Harring), uma misteriosa mulher que perdeu a memória em consequência de um acidente de carro que sofreu na noite anterior – e que adota esse nome após observar um pôster de Rita Hayworth na parede. Betty resolve ajudar Rita a desvendar seu passado, mas acabam entrando em uma complexa trama que envolve troca de identidades, uma chave azul e uma caixa que delimita uma importante transição no filme. Paralelamente à história das duas mulheres, há também a de Adam Kesher (Justin Theroux), um diretor de cinema que é obrigado por uma suposta máfia a escalar determinada atriz para estrelar seu próximo filme.
Se Cidade dos Sonhos já confunde alguns espectadores em decorrência de algumas “estranhezas” vistas na tela até boa parte de exibição, como um casal de idosos que ri exageradamente um ao outro, ou a assustadora aparição de um mendigo de fisionomia horripilante que vive atrás de um restaurante, tudo fica aparentemente mais incoerente depois da visita que as moças fazem ao Clube Silêncio – que é o momento chave (quase literalmente) do filme.
No teatro, o apresentador afirma, diversas vezes, que aquilo tudo não passa de uma ilusão. “No hay banda! There is no band! Il n'est pas de orquestra! This is all... a tape-recording. No hay banda! And yet we hear a band. If we want to hear a clarinette... listen. It is... an illusion!”, berra o homem, quase esfregando na nossa cara toda a verdade por trás do misterioso universo de Cidade. Após uma sucessão de eventos que suscitam questionamentos quanto à veracidade de tudo que vimos na tela, Betty encontra uma caixa e resolve levá-la para sua casa. Rita, ao abri-la com a chave encontrada em sua bolsa, revela a brutal realidade: nada daquilo existira. Tudo não passara de um sonho de Betty. Ou melhor, Diane.
Tudo o que vemos durante grande parte do filme é, na verdade, uma realidade construída por Diane Selwyn, uma moça que foi para Los Angeles tentar alavancar sua carreira de atriz. Ao tentar entrar para o elenco do filme A História de Sylvia North como protagonista, Diane é rejeitada pelo diretor de produção, que escolhe Camilla Rhodes (anteriormente Rita) para o papel principal. Camilla e Diane, porém, se tornam namoradas e a primeira, agora atriz de sucesso, consegue, esporadicamente, encaixar Diane em seus filmes.
Tudo ia bem, até que Camilla começa a se envolver com Adam Kesher, diretor de Sylvia North, despertando o ciúme a fúria de Diane, que, humilhada, decide contratar um assassino de aluguel para executar sua ex-namorada.
É fascinante perceber como a projeção feita por Diane em seu sonho transforma Camilla em uma mulher indefesa, altamente dependente de seus cuidados – soando quase como um conto erótico contemporâneo –, e Adam em um fracassado. Tudo em seu sonho conspira a seu favor, e o contraste com a realidade é chocante.
Há, ainda, elementos técnicos que enriquecem e reiteram sua atmosfera onírica, como a quase risível artificialidade do som (como no momento em que Adam apanha do amante de sua esposa) e a ótima direção de fotografia de Peter Deming, que confunde o público com postes de luz embaçados e superexposição da iluminação.
O filme é praticamente uma desconstrução do Cinema. E, no decorrer do longa, Lynch dá uma aula de linguagem cinematográfica, tornando este um clássico contemporâneo.
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