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Críticas

Cineplayers

A beleza, o carisma e o talento de Sandra Bullock não são suficientes para salvar o filme.

5,0

Um Sonho Possível é a versão light de Preciosa - Uma História de Esperança. Ambos os filmes contam basicamente a mesma história: a luta de dois adolescentes negros, com históricos de violência familiar e pais viciados em drogas, para quebrar a barreira social e encontrar um posição na vida. A diferença está no tom. Enquanto que Preciosa vai fundo no drama, Um Sonho Possível opta pelo caminho da fantasia e da edulcoração. A preocupação do diretor John Lee Hancock em dourar a pílula é tanta, que seu trabalho se insere num tipo de cinema educativo, de auto-ajuda, aquele em que a moral da história e as boas intenções dos personagens são realçadas a todo instante. É o que os americanos chamam de feel good movie. Com todas essas limitações, tanto na forma quanto no conteúdo, Um Sonho Possível mais parece um telefilme bem comportado.

A história começa em 18 de novembro de 1985, com a reprodução de um lance da partida de futebol americano, em que o quarterback do Washigton Redskins, Joe Theismann, é bloqueado pelo defensor Lawrence Taylor, do New York Giants. O filme defende a tese de que, a partir dali, os times sentiram a necessidade de repensar suas estratégias, abrindo espaço para um jogador que se ocupasse exclusivamente com a proteção do flanco esquerdo dos quarterbacks destros, aquilo que os americanos chamam de ponto cego. Essa função dentro do gramado só poderia ser exercida por homens grandes e ágeis, e de coxas e braços largos. Um dos que possuía a combinação desses elementos, tão rara e cara, era o jovem Michael Oher.

Nascido em 1986, em Memphis, Oher (Quinton Aaron) nos é apresentado no exato instante em que está sendo investigado por uma espécie de promotoria. Ele não sabe exatamente do que o acusam. O filme recua dois anos no tempo. Oher está no banco de trás de um carro. O veículo trafega por um bairro pobre. À medida que avança, as ruas passam a ficar mais arborizadas. Ele está em outro local de Memphis, mais abastado de onde acabara de sair. Seu destino é a escola Wingate, de doutrina cristã, onde postula um espaço no time de basquete ou futebol. Após algumas resistências iniciais, ele é aceito pela entidade.

Nesse momento, somos introduzidos à personagem de Leigh Anne Tuohy (Sandra Bullock). Ela é decoradora de interiores. Na sua primeira cena, Leigh fala ao celular com um cliente. Pelo seu tom, já é possível perceber que ela é dura na queda e que não leva desaforo para casa. Sua personalidade aparece no modo como educa seus filhos: quando a garota Collins comete uma falha no jogo de vôlei do colégio, ela a incentiva a levantar a poeira e partir para a outra. Nada de choros ou autopiedade. Leigh é casada com Sean (interpretado pelo cantor de música country Tim McGraw), ex-jogador de basquete da Universidade do Mississipi e atual dono de várias franquias da Taco Bell. Para aquela família, dinheiro não é problema.

O filme vai intercalando trechos da vida dos dois, até que, numa noite, ao voltar para casa com o marido, Leigh vê Oher perambulando pelas ruas da cidade. Em vez de dormir na sua casa, ele prefere se arrumar entre as arquibancadas de cimento do ginásio de esportes do colégio. Leigh se compadece com o drama de Oher e o convida para acompanhar até sua residência. Oher aceita. Dali nascerá uma relação de mãe e filho, de proteção mútua, que mudará a vida de ambos.

Um dos principais problemas de Um Sonho Possível é de foco. Aparentemente, o diretor (que também é o roteirista) não soube responder a uma questão básica: do que esse filme trata? Ora, a resposta teria que ser: da vida de um cara chamado Michael Oher. Logo, o atenção deveria estar voltada para ele e não para Leigh. Isso me parece até mesmo óbvio, afinal de contas, o filme se assume como uma biografia do jogador. Ao tornar Leigh a protagonista, Um Sonho Possível transforma Michael em coadjuvante da sua própria história. Alguém falou em racismo por aí?

É claro que a opção por uma atriz do calibre e com o potencial de bilheteria de uma Sandra Bullock, indica que a sua personagem foi concebida como a principal desde o início. Mas nesse caso o erro está na proposta em si, no próprio conceito do qual se parte. Um Sonho Possível é um caso crítico de filme que sofre de crise de identidade.

A eleição de Leigh como a protagonista prejudica o desenvolvimento da personagem de  Oher. Pouco sabemos sobre seu passado. Vemos apenas – em flashes – que ele foi afastado da mãe ainda quando criança. Do pai, ouvimos um comentário breve sobre sua morte num acidente de carro. Não temos qualquer informação sobre sua infância, com quem viveu, quem o educou, quem são seus outros irmãos e o quanto essas dificuldades forjaram sua adolescência.

Em determinados momentos do filme, percebe-se que o roteiro cria determinadas situações para que pudéssemos conhecer Oher com mais profundidade. Mas todas elas são desperdiçadas de forma até mesmo gratuita. A certa altura, Oher encontra um de seus irmãos trabalhando como garçom. Eles se abraçam calorosamente. Não se viam há anos. Infelizmente o roteiro não percebe o potencial da cena e não permite nem que ouçamos as palavras trocadas por ambos. Ao contrário, o foco da cena é na reação de Leigh, do lado de fora do restaurante. Pra piorar, o irmão não reaparece no filme e a sequência fica solta e sem função dentro da trama. Mais à frente, Oher volta ao lar para rever a mãe mas só consegue encontrar com os amigos de infância, sempre rodeados por mulheres, bebidas, revólveres e correntes no pescoço. Novamente nada de muito profundo sai daí.

Os problemas não se limitam ao desenvolvimento do personagem de Oher. O filme praticamente não aborda o tema do racismo (a única menção é num diálogo de Leigh com suas amigas num restaurante), deixando transparecer que a vida de Michael, após ser acolhido pela família Touhy, foi relativamente tranqüila. Além disso, o roteiro não explora um interessante viés aberto pela história, sobre o conflito entre a republicana Leigh (em certo momento do filme, ela defende o Presidente George Bush como o único capaz de colocar ordem numa repartição pública) e a democrata Miss Sue (Kathy Bates), professora particular de Oher.

Por fim, numa história tão sofrida como a de Oher, impressiona e incomoda a falta de conflito dramático do roteiro. Os filhos aceitam a figura de um novo irmão sem qualquer contestação. Não há qualquer indicação de ciúme ou desconfiança. Ao contrário, eles o vêem como um novo amiguinho (pra não dizer brinquedinho) e o recebem de braços abertos. O marido, por sua vez, é o exemplo máximo de compreensão e passividade. A certa altura, o filho sofre um acidente de carro que era guiado por Oher (a cena indica que ele teve sim uma parcela de culpa no evento) e o casal nem pensa em lhe dar uma reprimenda ou lhe aplicar um castigo. Pior ainda é a cena da investigação, cujo desfecho anticlimático coloca em xeque a própria opção do diretor em fazer uso do flashback.

Apesar de todos esses problemas, nem tudo está errado em Um Sonho Possível. A interpretação de Sandra Bullock merece destaque. Ainda que o Oscar recebido tenha mais relação com o seu momento na indústria do cinema e também com a fragilidade das concorrentes, a atriz se sai bem na caracterização de uma personagem que tinha tudo para cair na peruagem ou no nariz empinado. Não há exageros, nem caras e bocas. Bullock optou por uma atuação bem low-key, em que o menos é mais. Esse lado minimalista se adapta à personalidade de uma mulher confiante, segura, que acredita no próprio taco e que sabe atingir seus objetivos de forma serena e discreta. A Leigh, de Bullock, é a Erin Brockovich de Julia Roberts, sem o lado barraqueira.

Oher é interpretado pelo desconhecido Quinton Aaron, que também se sai muito bem. Seu personagem é de poucas palavras, o que desloca a atuação para os gestos e olhares. E nesse aspecto, Aaron consegue transmitir a vulnerabilidade e carência necessárias. A relação entre Bullock e Aaron, que era chave para o sucesso do filme, convence e faz com que, em certos momentos, até passemos a torcer por aquela dupla.

O restante do elenco não tem um tempo de exposição que os permita ganhar maior visibilidade. De toda a forma, Kathy Bates segura a onda com a categoria esperada e o ator mirim Jae Head consegue a proeza de ser um das crianças mais irritantes dos últimos tempos. Para sermos justos, a culpa talvez nem seja dele, mas sim do texto, que insiste em torná-lo bem mais adulto do que sua idade cronológica (há uma lamentável fala em que Sean Jr., seu personagem, exige do diretor da Universidade, digamos, um favor especial).

No fim das contas, pode-se dizer que Um Sonho Possível é a refilmagem de uma série de outros títulos que já vimos por aí, que abordam o baseball (Desafio do Destino), basquete (Momentos Decisivos, Estrada Para a Glória, Coach Carter - Treino Para a Vida), o golfe (O Melhor Jogo da História), e o próprio futebol americano (Desafiando Gigantes, Duelo de Titãs, Tudo Pela Vitória, Virando o Jogo, Somos Marshall). Talvez justamente por isso, essa característica de abordar algo já conhecido, explique seu enorme sucesso perante o público americano. Para o meu gosto, no entanto, esse é um de seus principais defeitos. A falta de originalidade torna Um Sonho Possível um filme à beira do dispensável.

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