"Nós não somos pessoas ruins... só viemos de um lugar ruim..."
Entre cortes rápidos, a câmera passeia pelos corpos de um homem e duas mulheres durante os movimentos ritmados de um ménage a trois. Mas, algo está errado: quando foca o rosto do homem, Brandon Sullivan, protagonista de Shame, a câmera encontra uma expressão de dor e sofrimento, contrapondo-se com a expressão de prazer que poderíamos esperar de uma situação como essa. Mas, para quem acompanhou a trajetória de Brandon durante os minutos anteriores da projeção sabe que, nada de errado existe na falta de prazer no seu semblante, afinal, Brandon está apenas buscando mais uma dose de sua droga diária (o orgasmo), e não o prazer que seu corpo poderia encontrar no de suas companheiras e vice-versa.
E, se algo fica claro ao acompanharmos Brandon (em uma performance espetacular de Michael Fassbender que, cena após cena nos faz sentir toda gama de sentimentos que se faz presente em seu personagem) é que em sua busca pelo orgasmo - seja em revistas e sites pornôs, masturbando-se logo ao acordar, ao contratar prostitutas ou, no sexo casual que encontra nas mulheres com quem flerta na noite de Nova York – ele nunca obtém o prazer que este poderia (e deveria) originar.
Bonito, elegante, jovem, e dono de um cargo alto em uma grande empresa, Brandon leva uma vida provida de qualquer indicio de sentimento (algo que é denunciado em seu apartamento, sem nenhum toque de personalidade, cheio de tons monocromáticos e espaços vazios e em seu figurino, que, apesar de impecável, não o diferencia de nenhum colega de trabalho), o que é justificável, é claro: como poderia um homem que vê necessidade constante de sexo, seja na hora ou local que for (nem no horário de serviço Brandon se priva do orgasmo já que, usa o banheiro do trabalho para dar vazão aos seus impulsos), arriscar-se a ver sua rotina abalada pela ligação emocional com outra pessoa?
E é esse abalo que surge na figura de sua irmã, Sissy (Carey Mulligan, muito bem, como de costume), quando esta chega em seu apartamento para morar com ele. Na fragilidade da irmã, Brandon vê refletida a sua própria, no olhar melancólico de Sissy, encontra a lembrança de feridas que nunca cicatrizaram e que, possivelmente, foram as responsáveis por moldar sua personalidade. E aqui, tem-se um dos grandes acertos do roteiro de Steve McQueen e Abi Morgan: a natureza dos traumas da relação entre Brandon e Sissy nunca nos é escancarada. Nós sabemos que algo ocorreu no passado de ambos (o que fica evidente no doloroso dialogo que ambos travam à certa altura, onde Sissy pronuncia a frase escrita no inicio deste texto, e claro, na cena em que esta ultima canta melancolicamente “New York, New York”, despertando uma solitária lágrima no irmão) e que isso foi determinante na maneira como estes lidam com suas vidas e seus sentimentos, mas, o fato em si (talvez abusos sexuais ou uma relação incestuosa, ou ainda, alguma outra opção) não nos é importante, e sim as conseqüências que este causou – e é sintomático perceber a ironia contida na maneira como, cada um à sua maneira busca curar suas feridas:
Se Brandon leva uma vida desprovida de sentimentos e ligações afetivas com outras pessoas, se entregando seguidamente ao sexo mesmo possivelmente sem nunca ter experimentado o prazer que este pode proporcionar, Sissy demonstra um impulso tão triste quanto o do irmão ao se entregar sem reservas à qualquer homem insistindo em afirmar que os ama, mesmo quando mal conhece seus parceiros, e, muito possivelmente, sem saber ao certo o que significa realmente amar alguém.
E já que mencionei a ironia contida na maneira que os protagonistas lidam com seus sentimentos, não poderia deixar de mencionar a brilhante passagem em que, disposto a envolver-se emocionalmente com alguém pela primeira vez, Brandon inicia um relacionamento com sua colega de trabalho (Nicole Beharie), e ao levá-la para a cama, não consegue alcançar a ereção. E, o fato do próprio Brandon se entregar ao riso quando minutos depois volta a conseguir a ereção ao transar com uma prostitua, revela que ele próprio entende a triste ironia presente na situação.
O que, por si só, parece justificar o que se segue a seguir, quando, parecendo se entregar de vez à natureza animalesca de sua obsessão, Brandon adentra pela noite de Nova York, em um clímax tenso e doloroso, onde, desprovido de qualquer pudor, o protagonista vaga em busca do próximo orgasmo sem parecer se importar com nada mais, chegando até mesmo à adentrar uma boate homossexual, o que só serve para fortalecer a afirmação feita no começo deste texto, de que, para Brandon o que importa é apenas conseguir uma dose de sua droga, e não a maneira como a alcança. E, quando vemos o sensacional plano em que, ao entrar na boate citada anteriormente, o reflexo de Brandon surge completamente desfigurado e irreconhecível em vários espelhos, não é difícil imaginar que, o fato de já não reconhecer-se mais seja um dos catalisadores de seu pranto de arrependimento ao final do filme, quando, farto do rumo que sua vida vem tomando e, por que não, esperançoso por uma convivência fraternal com sua irmã, após uma tragédia que quase os vitima, o protagonista parece sugerir uma nova existência, mais pacifica consigo mesmo e claro, com seus desejos e instintos.
E é aí que chegamos ao final em aberto (uma belíssima rima narrativa com seu inicio) que encerra Shame - e que não poderia ser mais justo do ponto de vista narrativo - e nos põe para fora da sessão com uma terrível dúvida plantada na cabeça. Dúvida essa que, muito possivelmente, consumiu (e consumirá) o próprio Brandon.
A critica definitiva para o filme. A decisão de Brandon no final pouco importa, talvez acabaria com o brilhantismo do filme. O importante foi ver a sua trajetória e como foi sendo consumido pelo seu vicio.
Talvez o filme que aborde o tema da forma mais verdadeira que vi... No 'ultimo ano, lançaram Ninfomaníaca, não sei se trata do mesmo tema... Enfim, filmaço!