Cada nova geração humana se insere na sociedade a partir de um contexto formado por hábitos, anseios, expectativas, códigos morais e outras condicionantes. São guias historicamente forjados e que conduzem a vida - ou podem levar a uma tenra morte. A ultra-racionalidade hodierna nos serve como uma venda à compreensão sobre a maneira como as gerações passadas encararam valores superados ou eminentemente relativizados nos dias atuais como a honra, a pureza, entre outras mais.
O cinema japonês recorre consciente e constantemente às perspectivas valorativas da sua cultura oriental. Questões como ética do trabalho, relações sociais e família aparecem brilhantemente não como plano de fundo, mas como elemento estruturante, norteando tramas complexas e densas. É um padrão de cinema que exige de nós a visualização para além das aparências e da superficialidade. Nem mesmo os padrões culturais ocidentais, cada vez mais difundidos e incorporados pelas mais diferentes culturas transformou esse paradigma, a despeito da recente obra Pais e Filhos (Hirokazu Koreeda, 2013). Os dramas humanos e as perspectivas filosóficas sobre a vida constroem teias narrativas de gustação peculiar.
Em O Anjo Embriagado (1948), Kurosawa concebe a relação tensa e conflituosa entre um médico e seu paciente, membro da máfia local. Este, ao ser diagnosticado com tuberculose, reage dubiamente; o medo e o ceticismo quanto à doença o acompanham. Aquele, por sua vez, apesar da dureza de caráter, rege-se por uma inabalável disposição de convencer o jovem gângster de que ele precisa se tratar a partir de mudanças de hábito.
Há um ingrediente narrativo que percorre a vida dos dois protagonistas. O chefão da gangue, preso por anos, está prestes a sair da cadeia. Ao mesmo tempo em que busca rearticular os seus antigos parceiros, ele não se esquece da sua companheira, que está, à margem do seu conhecimento, sob a proteção do médico, que cuidou das doenças da mulher e com ela mantém, atualmente, uma relação íntima.
A teia que entrelaça os personagens é carregada por uma ambientação miserável do Japão que acabara de ser derrotado na 2ª Guerra Mundial, muito distante da imagem de um país moderno, eficiente e capaz de mover toda uma indústria tecnológica e científica a favor das suas dinâmicas urbanas e sociais dos dias de hoje. O cenário é de casas e gente miseráveis, recorrendo à bebida, aos jogos e à vida mundana, um substrato social entregue à sua própria sorte, elevando o já forte clima de tensão que perpassa a história.
O cálculo da ação humana costuma interagir, nos dias atuais, com ambições, expectativas e condicionantes hedonistas diante de múltiplas possibilidades abertas à vida. No mundo de O Anjo Embriagado, a vida, para um observador do mundo de hoje, não tem grandes desenlaces a oferecer. Compreende-se, portanto, nas condições deste observador, que a realidade daquela época não permitisse relações profundas de apego terreno, tornando os códigos sociais elementos condutores da ação. Essa obra, que ainda não desnudaria o talento do diretor japonês ao mundo, já revelava, no entanto, a sua talentosa sensibilidade criativa.
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