Um ingresso furado que serve de recordação do estigma de uma pretensa hierarquia entre realidade e representação; a tela branca que detém um mundo, limite do recalque da imagem em relação à carne que tanto lhe é cara; a baixa luz da sala de cinema, energia escura capaz de expandir quase indefinidamente o universo. Componentes que constituem um exercício que recebe o nome de Holy Motors.
Já que previamente somos apresentados a todos os elementos constantes à sua composição, é justo que o filme, como numa continuação do efeito criado pelo ambiente externo a ele, se inicie de forma a deixar evidente sua condição enquanto experiência cinematográfica: um ser humano caminha em direção a uma parede e nela introduz o seu dedo em forma de chave, mas nada de fato acontece. Desejando chegar ao outro lado, ele se vê obrigado a transpor o obstáculo de qualquer forma. Rasgar a parede, como quem rasga o tecido de lógica que limita realidade e ficção, foi a saída encontrada. A fenda revela uma sala de cinema. Lá, diversos telespectadores anestesiados, assistindo passivamente a luz sendo projetada na tela. Nós, aqui, semi-passivos, do outro lado da tela, somos arremessados para dentro do filme.
Nele encontramos Denis Lavant, ator fetiche de Carax, no papel de Sr Oscar, um homem responsável por dar vida a diversos personagens em encenações de cotidiano. Todos os encontros são previamente marcados e nós acompanhamos cinicamente a sua preparação e desenvolvimento dentro de uma limousine branca.
Os contos vividos pelo personagem principal transitam entre os diversos assuntos que Carax pretende colocar em debate: a iconografia do cinema, através do segmento em que a personagem de Minogue canta a resposta pra uma pergunta, o clichê dos musicais; a crise da representação na pós-modernidade no discurso de Oscar sobre o cinema e a “beleza do gesto”; e diversos outros que, além da função própria, cumprem um papel como peça chave para a compreensão integral do projeto.
Lavant passeia por esses contos da mesma maneira que sua limousine transita pela cidade: ambos deslocados, grotescos, ainda que belos a sua maneira, com movimentos que carregam muito de sua própria condição e existência, em suma, suas particularidades – não são poucas: um carro de proporções grandiosas que sempre se faz presente por onde passa, tanto quanto a carne, a pele, a atuação um tanto característica de Denis que se sobressai mesmo quando o ator está travestido.
Antes disso – e muito por conta disso -, o filme ainda comporta certo discurso de contemporaneidade que fala muito sobre a nossa própria condição de existência, nossa situação como ser. A realidade é que somos devir, eterno vir a ser – rizomas, segundo Deleuze e Guattari. Catapultados de uma relação à outra, sem que tenhamos compreendido plenamente a anterior e ainda não estando inteiramente preparados para a posterior. O existir, esse constante ontem hoje amanhã, pode ser capturado por todo o aparato do cinema?
E é sintomático que nos momentos que se seguiram após a subida vagarosa dos créditos e o acender das luzes, nada tenha sido dito por todos que assistiram ao filme, muito menos por mim. Apenas se ouvia algo: o som daqueles que pausadamente respiravam – e acredito até agora que alguns não o fizeram durante todo o tempo –, que silenciosamente (na minha cabeça) perguntavam: o que eu faço agora? Eu, espectador, também um daqueles apresentados de imediato no início do filme, espelho de nós todos, passivos diante da tela grande (e muitas vezes da vida, por que não?), havia enfim retornado, mas agora diferente, talvez não por muito tempo ou quem saiba eternamente, carregado com tudo que Carax postulara: a percepção da inconsistência e da incompletude que reside no próprio ato de existir.
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