“Já não se fazem mais artistas como antigamente”. Você certamente já ouviu de alguém ou até concordou com essa afirmação em determinado momento de sua vida – seja ouvindo um solo de guitarra do Jimi Hendrix, a rouquidão etérea da Billie Holiday, mergulhando na escrita alucinante da beat generation ou talvez constatando que teria sido mais compreendido tendo vivido em outra época, como a da contracultura, por exemplo. Esta é a tônica do mais novo, badalado e delicioso filme da tour européia do Woody Allen, Midnight in Paris (2011), apresentado no Festival de Cannes desse ano, onde o mestre das neuras cotidianas eleva, a um patamar histórico, a recorrente teoria da insatisfação crônica: nunca nos damos por satisfeitos com o que a vida nos dá.
O modus operandi do Woody Allen inova pouco, porém encanta como nunca. Na trama, o incansável cineasta não abandona o arquétipo do escritor insatisfeito, fracassado ou incerto sobre suas escolhas. Gil Pender, interpretado por Owen Wilson, em viagem à Paris com sua noiva Inez (Rachel McAdams), é um roteirista de sucesso, porém frustrado. Ambos são tão incompatíveis romanticamente que só reforça que as ‘escolhas’ sentimentais dos personagens allenianos são das mais controversas – basta lembrar de Vicky Cristina Barcelona (2008). Diante dessa incompatibilidade, Gil procura, em longas caminhadas pela Paris que tanto adora, inspiração para um novo roteiro com mais paixão e sinceridade que os filmes pipoca que o fizeram bem-sucedido nos states. Pela sinopse, nada demais. No entanto, apesar da aparente falta de inovação do enredo (escritor frustrado buscando se afirmar através da arte), Midnight in Paris traz uma radicalização na narrativa e voilá: algumas das influências artísticas do Woody Allen, dentre outros figurões da arte, antes apenas refletidos em suas obras, agora são, literalmente, parte integrante da história. Com isso, ele recupera a sua boa forma – como fez em Whatever Works (2009) – e se redime com boa parte do seu público após o insosso, porém palatável You Will Meet a Tall Dark Stranger (2010).
Imagine você, um amante da literatura, música, poesia, pintura ou das artes em geral, tendo a oportunidade de fugir da monotonia (ou conformismo?) do cotidiano e, a cada batida da meia-noite, voltar no tempo para a Cidade Luz dos anos 20 – anfitriã de escritores e artistas boêmios, onde a efervescência cultural brotava nas esquinas e cafés. Mas não só isso: pense em bater um papo descontraído e íntimo com Ernest Hemingway, ouvir Salvador Dalí inspirado falando de rinocerontes, dar dicas de cinema a Luis Buñuel e conhecer Zelda e F. Scott Fitzgerald numa apresentação do Cole Porter que canta a imortal Let’s do It. Se seus olhos brilharam só de pensar nisso, Midnight in Paris será um deleite. Essa aventura pitoresca protagonizada por Gil Pender encanta e a expressão de satisfação do personagem diante dessas experiências é tamanha, que, ao espectador, abrir aquele sorrisão é quase inevitável; a cada batida da meia-noite, uma gostosa expecativa toma conta dos moles corações cinéfilos (aquela mesma sensação dos encontros entre a Mia Farrow e Jeff Daniels em The Purple Rose of Cairo (1985)).
Como era de se esperar, várias cenas de Midnight in Paris são simplesmente homéricas/geniais: como quando numa mesa com Salvador Dalí, Luis Buñuel e Man Ray – nomes máximos do Surrealismo, Gil revela sua viagem no tempo e estes, evidentemente, chegam à conclusão de que aquilo era “perfeitamente normal”. Outro mérito do Allen – e que se tornou uma marca em sua obra – é a sua incrível capacidade de extrair o máximo dos atores. Na verdade, não seria exagero afirmar que Midnight in Paris tem o melhor casting dos seus filmes até hoje: Owen Wilson está assustadoramente brilhante, talvez no seu melhor papel; Marion Cotillard, sempre linda e encantadora, dá vida a uma entusiasmada e romântica estudante de moda (que foi paixão de ninguém menos que Pablo Picasso, Amedeo Modigliani e Hemingway); a veterana Kathy Bates brilhante como Gertrude Stein; Adrien Brody impagável como Salvador Dalí; Carla Bruni como uma sexy (porém contida) e perceptiva guia de museu; a doce Léa Seydoux (La belle personne) num papel curto, mas decisivo; e até uma Rachel Adams convincente como uma mulher segura das suas [frívolas] ambições e valores. Diante disso, o resultado não poderia ser outro: uma explosão de química contagia o espectador.
De certa forma, ironicamente, Midnight in Paris é uma volta ao passado na cinematografia do Woody Allen. Referências às suas obras-primas mais clássicas surgem aos montes: Manhattan (1979), já que temos aqui uma cidade (Paris) não só como pano de fundo, mas como uma das mais belas e magistralmente fotografadas personagens principais (a abertura do filme fala por si só); Annie Hall (1977), onde o pedante na fila do cinema vem representado por um intelectual muito mais preocupado em ostentar seu vasto conhecimento artístico, Paul (um Michael Sheen barbudo); e, sobretudo, The Purple Rose of Cairo, ao usar do realismo mágico como forma de expressar os anseios internos/reprimidos dos personagens e celebrar seu amor pelas artes.
Mas não se engane, o mais novaiorquino dos diretores não quer, com Midnight in Paris, massagear o ego daqueles que captaram suas referências. A intenção dele é bem nítida: te dar um belo tapinha na cara, como quem diz: “Dê uma olhada ao seu redor, a vida pode ser bela e ela está bem aí.”. Pena que em determinados momentos ele pareça julgar a capacidade interpretativa do espectador e escancare o significado de Midnight in Paris em pelo menos duas situações-chave do filme.
Apesar do saudosismo latente de Midnight in Paris, Allen é cirúrgico e não alimenta ilusões: essa negação do presente em detrimento da vangloriação do passado não é característico apenas a nossa geração; e mais, ela não se justifica, afinal, o passado pode ser a fonte de nossas inspirações, mas são nossas ações no presente que definem quem de fato somos. É nesse trajeto, seja numa Paris chuvosa ou não, nas situações mais incomuns ou não, que encontramos nossos amores e, inclusive, a nós mesmos. Com um roteiro inspiradíssimo e uma direção primorosa e sensível, Midnight in Paris soa, ainda, como uma cínica mensagem àqueles apreciadores do cinema alleniano que afirmam, convictos, que voltar à boa forma de antigamente é o melhor que Woody Allen pode oferecer.
Durante os créditos, com o delicioso jazz do virtuoso clarinetista Sidney Bechet ao fundo e um batalhão de sorrisos de satisfação na sala de projeção, Woody Allen parecia ter provado que ainda sabe o que está fazendo. Nós, ali, só tínhamos a agradecer.
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