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Críticas

Cineplayers

Embaralho, embaraço e aniquilação tardia.

4,5
O texto pode conter spoilers sobre a trama

Uma miríade “heterogeníssima” pode sustentar e justificar a assertiva seguinte, e, no entanto, uma razão parece se sobressair pelo seu alcance elástico e sua potência de verdade introjetada quase que inconscientemente. A assertiva: trazer à luz um filme, hoje, carrega um peso, uma espécie de fardo, diferente do que teria sido realizar um há 50 anos – ou mesmo 15, aliás, já que se trata de uma arte recém-nascida. A razão é, talvez, simples demais, mesmo que escorregadia: não há espectador inocente. Ou melhor: não há (mais) ninguém que veja, e, portanto, creia, como antes. Mas antes de quê? Que evento prévio pode ter tornado o ato fílmico, da concepção mental de uma história à incidência da luz na tela que quer ser vista, algo escorregadio e com tendências ao enfado? Ora, Aniquilação (Annihilation, 2018) – é preciso ser honesto: praticamente toda a sub-indústria estético-narrativa com que a Netflix tem abocanhado e regurgitado pelas mãos de supostamente renomados diretores – prova-o, em práxis, muito bem.

O baralho desgastado está sobre a mesa há mais tempo de que nos apercebemos: os códigos já estão instaurados, os gêneros se reciclam a uma velocidade paupérrima; pouco espanta, impressiona ou excita. Há a sensação, na verdade típica e sintomática do que chamamos de contemporâneo, um tempo tão fabricado e efetivamente contemporâneo a si mesmo, a todo segundo passado, não necessariamente de que não se fazem mais filmes como antes, grande chavão conservador, mas que, ora é trabalho árduo, quase hercúleo, produzir algo com um sopro de originalidade, ora ressurge a sensação de que a criatividade “verdadeira” se perdeu (e para onde teria ido? As coisas vão a algum lugar de morte ou dormência?). 

Pois eis que depois de quase, senão mais de uma hora de projeção, o esgotamento particular, a impaciência espectatorial, encontra o reflexo perfeito no fluxo estéril da narrativa: nada de propriamente singular ou relevante aconteceu na trajetória das cinco mulheres enviadas à zona, o lugar que não só é preparado enquanto expectativa diegético-visual pela voz das cientistas e irradiação multicor própria de sua superfície, mas que a própria sinopse, movimento curioso, “vende” como “um local onde as leis da natureza não se aplicam”. Agora, é preciso perguntar não “que leis?” ou “que natureza?”, mas: por que diabos, com que expectativa, a partir de que lançamento fértil nas possibilidades infinitas de subverter a natureza, e que obviamente mal chegou a sair do solo – por que, afinal, este lugar que pode-se traduzir como fulgor, brilho ou resplandecência (“shimmer”, no palavriado delas) se afigura em quase duas horas como, no máximo, um lugarejo de mofos coloridos nas paredes, plantas-homem e criaturinhas mutantes broxantes? Se não minimamente decepcionante para alguém que havia estruturado um poderoso suspense sci-fi poucos anos antes, e é claro que estamos a falar de Ex Machina: Instinto Artificial (Ex Machina, 2015), decerto um murchar de tudo o que poderia ter vindo a ser. É mais desgostoso o filme que chamamos de ruim ou aquele diante do qual tem-se a certeza de que foi um míssil enviado ao nada, mas que teve, no momento de ignição, um estardalhaço inerente?

Curioso, mas também irônico, porque absolutamente costurado de ineficácias: iniciado e pontuado mais à frente diversas vezes por um momento futuro deslocado, quando já partimos do princípio de que, sim, Lena (Portman) será a única sobrevivente da missão de número incontável, é fluido encontrar-se numa encruzilhada auto-provocada: ou aquilo que se segue e o que aconteceu na “zona” confirmarão o impacto misterioso da mulher interrogada por aparentes autoridades – alguns poderão até arriscar que supremas autoridades em iminência de salvamento do mundo –, ou o trem descarrilará, e, neste caso, não apenas pelo que não há de impressionável nos acontecimentos ou geografias e particularidades do lugar: antes tudo em Aniquilação nascesse morto!, sua insuficiência crônica é uma de embaralhamento, o típico e cancerígeno caso da narrativa que se dispersa e finda por pura e simplesmente só “atirar para todos os lados” – nem sustenta os núcleos que gera, nem acelera ou dinamiza a própria espinha dorsal. Mas motivar a busca da bióloga e guiá-la pelo desvendar do estado mortal do marido zona adentro não é a célula originária do câncer. São todas as suas raízes que o comprovam: a infidelidade descoberta e fragmentada em microepisódios que, se servem de alguma coisa, é para simular uma tentativa tola de torná-la mais – o quê? – complexa, estilhaçada, densa, menos moralmente correta?; ademais: em que temporalidade paralela se espera que o anúncio e o desenvolvimento críveis e sensíveis da relação desgastada com o marido se concluam ou cristalizem num chororó embalado por uma música de dramaticidade duvidosa ou por um momentinho de cócegas à cama?

Ao menos até o aparecimento monstruoso e de fato assustador da criatura, que é um híbrido entre javali e lobo (a incerteza, na verdade, alimenta o breve fôlego verdadeiramente criativo), ainda que depois dela tudo volte a ser pobre e sem encantamento, o que se vive é um conservadorismo disfarçado e atípico: encoberto porque se flagela o tempo inteiro com a vendagem auto-sabotada de um mundo “que desafia as leis da natureza” mas não consegue sair do tradicionalismo do espelho da realidade, e acaba deixando tudo para o discurso – sabemos que dizer um fenômeno não é vivê-lo, e realidade diferenciada alguma se constrói com uma iluminação cujo único louro é enfeitar e reproduzir as cores do arco-íris –; atípico pelo que tem de desviante: é um tradicionalismo emperrado numa estética sem qualquer vestígio de rompimento ou subversão, e não exatamente no que possa haver de conservador em seu conteúdo ou discurso. 

Asfixiado por tudo-o-que-nunca-foi, a obra se encaixa numa espécie de prisão que pode ser ilustrada por um comparativo: nem Stalker (idem, 1979), porque Garland não é “Tarkovsky o suficiente” para erigir um lugar-situação metafísico apenas com a gestualidade da câmera e o som, e sua apelidação autoimposta de “fulgor” nunca chega a vingar, sequer em sua sequência-chave final, nada por acaso picareta e supostamente aberta; nem Avatar (idem, 2009), que embora também permaneça afixado nas aproximações do nosso mundo com aquele representado (o que retesa a imaginação revolucionária e faz com que queiramos replicar seres de duas pernas, bichos com asas e quatro patas, se, afinal, o mundo é eminentemente outro?), ao menos se dá ao trabalho de compor e costurar a efervescência temática do planeta distante e suas possibilidades de estender outros hábitos com arcos dramáticos que os utilizam enquanto propulsores aventurescos. 

A resultante é um filme em aspas: protocolar, cansado, dependente de mais da sua metade (e para, ao cruzá-la, não criar quase nada), artificial e ingênuo diante de seu espectador, sujeito contemporâneo e estuprado de imagens e fórmulas a ritmos que ainda não conseguimos nós mesmos processar. Uma embalagem de adereços e roupagens cuja falha foi não ter sabido gerir o orgânico ou sustentar a própria contagem. Sem narradores, não há brilho; sem ossos ou carne aos homens e às histórias, repetidos simulacros reluzentes e fadados ao esquecimento.

Comentários (9)

Kennedy | terça-feira, 20 de Março de 2018 - 11:40

Esse filme não foi produzido, escrito e dirigido para ser exibido na Netflix. A produção conseguiu, com sorte isso sim, fazer com que a Netflix comprasse os direitos de exibição, uma vez que a Paramount queria cortar várias cenas que, de acordo com o diretor, tirariam a essência do filme. A solução encontrada foi exibi-lo na Netflix, e não fazer como fizeram com Ex Machina, lançado direto em home-video (algo cada vez mais defasado).

Chcot Daeiou | terça-feira, 20 de Março de 2018 - 11:43

bom saber, Kennedy, imagina o vácuo que ia ser se o filme fosse ainda mais desmembrado.

Mateus da Silva Frota | sexta-feira, 23 de Março de 2018 - 19:49

A crítica é muito justa e bem aplicada, faz repensar bastante quem achou o filme acima da média, também acho curioso e contraditório que falte justamente criatividade hoje no cinema, principalmente na ação/ficção estado-unidense. Por que diabos "a outra realidade" é sempre humanos verdes, aranhas com mais patas ou pássaros com duas cabeças?

Walter Prado | sexta-feira, 07 de Dezembro de 2018 - 17:53

"A solução encontrada foi exibi-lo na Netflix, e não fazer como fizeram com Ex Machina, lançado direto em home-video (algo cada vez mais defasado)."

Ex Machina foi lançado direto em home-video aqui no Brasil, nos EUA e em dezenas de outros países saiu no cinema.

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