Saltar para o conteúdo

Barco, O

(Barco, O, 2018)
8,4
Média
4 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

O Barco e as imagens aloprando uma longínqua e miúda comunidade cearense

8,0

Temos aqui uma espécie de conto praieiro experimental, filmado com absoluto rigor pelo cineasta e diretor de fotografia Petrus Cariry. A obra vislumbra a adaptação do conto “O Barco”, do também cearense Carlos Emílio C. Lima. Adaptado pelo próprio Petrus, seu pai Rosenberg Cariry e por Firmino Holanda, este último também carregou a montagem junto de seu diretor. Mais uma obra cearense porreta denotando a força desse Ceará, tão forte e invocado.

De pronto somos entumecidos pelo habitual, e soberbo, trabalho de fotografia do próprio Petrus Cariry, que já havia mostrado serviço em obras suas como O Grão (2007) Mãe e Filha (2011), Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015), e em trabalhos de terceiros como no filme Currais (2019) de Sabina Colares e David Aguiar. Trabalho este que visa montar um esquema de cinema altamente sensorial com esta fita. Quer nos meter com todo gosto naquela narrativa lenta, soturna e profunda acerca da existência por repetição de vida e do tesão pela esperança de desprendimento emancipacionista que muitos possuem e poucos alijam êxito em conseguir.

Barco isolado. Destaque na fotografia. Signos são montados através dela. Um conto praieiro noturnoso em contraste com o Sol feroz do dia. A escolha por planos estáticos e alguns travellings curtos e lentos ajudam na construção de uma atmosfera lúgubre. Aproveita-se muito bem da ambientação na Praia das Fontes, no Ceará. Uma espécie de emolduramento de cinema. A permanência brutal dos personagens naquele ambiente pela força das imagens. O isolacionismo através dos planos. Sentido pesadamente. Uma comunidade afastada. Onde o percurso da rotina é mostrado flagrantemente pelo peso desses tão citados planos. A pescaria pela manhã nos mostra o entendimento do usufruto da profundidade de campo do Petrus. Onde os personagens são mostrados encaixados na exuberante paisagem praieira do Ceará, com o labor pesado mostrado ao fundo. Nisso a imagem comprida de aspecto 2:39 se adequa perfeitamente. Dando o tamanho e propensão sensorial que o gigantismo desse comprimento traz a reboque. Completa a moldura estética invocada proposta. A pescaria, o mar, a sobrevivência. Sempre presentes.

A luz na noite. As velas e fogareiros iluminam as formas isoladas de vida numa atemporalidade do infinito. A iluminação dos rostos numa espécie de solidão coletiva, por mais paradoxal que esta minha afirmação possa parecer. Aquelas figuras estão ali sobrevivendo numa rotina eterna e seus rostos são iluminados de forma soturna, numa meia luz a cintilar das velas que os iluminam. Reiterando sub-repticiamente a rotina que os persegue, na qual a maioria parece aceitar sem relutância, mas não sem um desconforto. Porém o medo da mudança é maior que tudo isto. Este medo é personificado na mãe. A música mantém este tom. Assim como o som taciturno do mar, das vozes e grunhidos secos e das porradas nas madeiras do barco. A constituição de uma existência crua. Um cinema sensorial. Tudo coadunando em som e imagem para o apontamento de uma realidade inescapável. O que torna tudo ainda mais escroto é a beleza visual daquela situação. Mostrada não como terrível, mas como dura. Uma dureza belíssima aos olhos. O que nos tensiona ao mesmo tempo a querer estar ali pela beleza acachapante ao mesmo tempo que sentimos o insulamento brutal daquela pequena comunidade. A sensação disto no cinema é amplificada. Te faz adentrar naquela praia, e conseguir quase sentir o sabor de areia e água do mar.

Um aproveitamento joia do scope. Com espaços e personagens bem ajambrados nos planos. Definidos nas imagens por seus discursos e sensações. Como na reclamação do filho “A” (Rômulo Braga) com a mãe acerca da eterna permanência naquela praia segregada, onde estão dispostos cada um numa ponta do plano e de frente um para o outro com uma porta entreaberta ao meio. Antagônicos. Ela querendo conservar o estilo de vida vigente e ele querendo ver e sentir o que existe além da praia. A permanência em conflito direto com a transformação. Quer outro exemplo do brabo? O isolacionismo do Cego (fantasmagórica personificação do grande Everaldo Pontes). Sempre disposto na penumbra de sua solidão, quando não totalmente exilado esbagaçando restos de peixes nas mãos, em companhia de mais alguém a visitá-lo com indagações igualmente solitárias, como quando “A” o faz, cheio de dúvidas e descrenças acerca do que mais a vida pode oferecer. “A”, por sinal é mostrado sempre irritadiço, quando não desesperançoso, com aquela vida. A chegada da mulher começa a mudar suas feições, inclusive em seu conflito interno que desperta para fora.

O ritmo é distendido pelas imagens. Longo e sentido. Encaixa perfeitamente com a dinâmica daquele pequeno grupo. A lentidão da rotina na movimentação dos personagens, ou a não movimentação dos mesmos. A agonia desta rotina num ambiente paradisíaco. “A” seguindo deslocado nisso, como se fosse um elo perdido e esquisito à família, sempre pressupondo que existe algo mais adiante. O Barco é a esperança dele vazar dali? E isso com a aparição da mulher? O que tem a ver? Uma sereia na areia? Volúpia? Lascívia? Perigo? Ela declama nua seus contos de encantamento e é visitada por homens na lua cheia. Signos culturais? Barco. Monstro de esperança? Mulher sobrenatural? O resto no mundo no dicionário. Para onde vai o Barco?

A mulher é o elo de saída dali. O conhecimento externo. O desconhecido atraente. O desnudamento dela serve pra isto. Causar, além do tesão dos envolvidos, a curiosidade para com o desconhecido. O Barco estaria ali como signo de saída para o desconhecido citado. E a sereia praieira acaba servindo como provocadora e estopim para a emancipação de “A”. Exatamente por isso que a câmera a deixa perambular com suas vestes e movimentos. Atraindo pescadores para o seu seio. E para onde realmente o Barco os leva? Não interessa. A passagem era de saída da praia e não de chegada a algum lugar.

“Pelo mar quase nada chega e quase nada se vai”

Comentários (0)

Faça login para comentar.