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Críticas

Cineplayers

Relançado com novos cortes, ainda assim um filme medíocre de Kar-Wai.

4,0

Cinzas do Passado Redux é a versão Director's Cut do filme que Wong Kar-Wai fez em 1994. Na teoria, versões Director's Cut normalmente implicam que a primeira versão do filme não saiu da forma que o diretor vislumbrava, seja por ter de se dobrar às exigências do estúdio, seja por falta de tempo ou recursos. Não foi o que aconteceu aqui, o filme simplesmente não teve uma boa comercialização na época e não havia sido oficialmente lançado nos EUA e vários países da Europa.

Agora que Kar-Wai virou figurinha carimbada nos festivais do mundo todo, resolveu relançar o seu filme esquecido, fazendo uma edição diferente e marotamente colocando um redux no título, como fez Francis Ford Coppola com a versão extendida de Apocalypse Now. Só que, ao contrário do longa-metragem de Coppola, Cinzas do Passado Redux não tem cenas a mais, e sim cenas a menos - algumas das melhores cenas foram inexplicavelmente tiradas - e a “nova edição” são só perfumarias para inglês ver, pois o filme continua essencialmente idêntico.

Baseado bem levianamente num romance de Louis Cha, o filme se passa inteiramente no deserto de Gori, no interior da China, num mundo semifantasioso onde as artes marciais estão presentes em todas as relações humanas, caminhando sempre entre a homenagem e a paródia dos antigos filmes wuxia da companhia Shaw Brothers. Só que aqui as lutas em si têm uma importância bem pequena, o filme só tem três cenas com elas, sendo que uma foi retirada desta versão. Mesmo elas sendo interessantes, estão longe de ser o foco.

A história se centra em Ouyang Feng, um ex-lutador que se isolou do mundo numa cabaninha no meio do nada e vive de agenciar artistas marciais ainda em atividade em troca de dinheiro. O filme é quase inteiramente centrado nele, o que deixa o clima meio pesado e incômodo, já que ele é uma pessoa extremamente sacana e ranzinza, chegando a pedir sexo a uma menina que quer vingar a morte do irmão e não tem dinheiro. A menina passa o filme todo com o jegue dela amarrado em frente à casa dele, e ele aproveita toda oportunidade para provocá-la, perguntando se ela estaria pronta para largar o orgulho e se prostituir, e depois ainda zomba de um de seus lutadores de aluguel que resolve ajudar a menina por compaixão.

Depois descobrimos que tamanha amargura vem do motivo mais novelão possível: a mulher dele o deixou para se casar com seu irmão. E não pára por aí: todas as várias curtas histórias do filme são desse nível, como o espadachim cego cuja mulher se apaixona por outro homem e vai até Ouyang pedindo pela morte deste homem, que por um acaso é o melhor amigo de Ouyang; ou o príncipe do clã Murong, que é obcecado pela irmã a ponto de arranjar seu casamento e depois querer a morte do marido, enquanto ela quer a morte do irmão, e no final ambos são uma mesma pessoa com distúrbios esquizofrênicos. Chega a ser cômico e deprimente um filme sério com uma história dessas, mas é algo que dá facilmente para relevar se ao menos se assumisse que a história é horrível e tentasse trabalhar em cima disso. Filmes sérios também podem ter enredos cafonas sem que isso os comprometa. Isso é, daria.

O grande problema nem é a história em si, mas como ela é contada. Para deixar um clima mais misterioso e onírico, a seqüência lógica dos acontecimentos é embaralhada, muitos elos que fariam a ligação entre as várias histórias são omitidos e há cenas absolutamente aleatórias que não têm relação nem com os personagens, nem com a trama, nem com o tema. Claro, esses são os truques mais velhos do cinema para fazer uma história simples parecer complexa, mas pode funcionar muito bem se feito com um mínimo de discrição ou com critérios. O próprio Wong Kar-Wai já fez isso competentemente em outros filmes como Amor à Flor da Pele e 2046 - Os Segredos do Amor, mas aqui ele parecia estar muito em começo de carreira e tudo ficou muito aleatório e prepotente, e 15 anos depois ele nem se deu ao trabalho de disfarçar isso nessa versão Redux.

Fez pior, agora ele dividiu o filme em estações, da mesma forma do Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, de Kim Ki-Duk. Só que ele nem reorganizou as cenas, apenas incluiu umas tomadas em fundo preto escrito a estação que passaria a vir, como se isso fizesse alguma diferença pro filme. Aliás, até faz, quem não sabe o quão gratuita foi a inclusão dessas estações vai achar que elas têm um significado extremamente profundo e filosófico, que de alguma forma explica os acontecimentos sem graça do filme.

E a estrutura do filme é basicamente essa, começa uma estação, monólogo com alguma indagação filosófica fuleira, algum personagem novo vai procurar o Ouyang, ele reclama da mulher, corte para cena aleatória, volta pra história, corte para algum plano artístico, corte para o desfecho da história anterior, volta pra história atual, outra cena aleatória e termina com a continuação do monólogo que abriu a estação. A única parte interessante da história é bem no final, numa cena onde a sempre talentosa e bela Maggie Cheung, aqui interpretando a ex-esposa do Ouyang, divaga sobre as conseqüências e particularidades da memória - um tema recorrente nos filmes do Kar-Wai - e como isso influenciou nas ações dela, jogando uma nova luz sobre a história e a personagem, que até então só conhecíamos através do ponto de vista do ex-marido. Se todo o resto do filme se focasse nessa idéia e a abrangisse para as outras histórias, teria sido infinitamente mais interessante.

Tecnicamente o filme tem seus altos e baixos. A fotografia, que é sempre o ponto alto nos filmes do Wong Kar-Wai, aqui aparenta tão esquizofrênica quanto a princesa transformista do filme. Ora ela está muito bonita, com planos exóticos e estilizados, em outras ela chega a doer os olhos. Aliás, o filme só tem duas cores, amarelo e azul, e é incrível como foram criados planos tão diferentes, com um tecido em azul claro no meio de uma floresta em azul bem fechado e com o rio em azul brilhante para mostrar que está refletindo a lua (sem brincadeira, essa cena é toda azul, e ficou muito legal), ou com um pequeno detalhe em azul contrastando num mar de amarelo e vice-versa. Por outro lado, quando entra a fotografia feia, esquece-se os diferentes tons que permeiam o filme e ditam o clima das cenas, e entra as cores primárias.

O amarelo mais forte e o azul mais forte e gritante que existe, ambos super saturados, queimando a retina e impedindo qualquer apreciação da cena em si. Essa composição específica é utilizada ao extremo durante o filme por algum motivo obscuro, talvez o fotógrafo tenha gostado, ou tenha gastado muito tempo desenvolvendo a técnica e quis fazer valer o esforço, mas qualquer pessoa com bom senso mandaria tirar sem pensar duas vezes.

Além disso o filme inteiro está coberto por uma camada de granulação muito estranha e artificial, talvez para dar a impressão de um mundo mais cru e triste, o que até funcionou muito bem no filme seguinte do diretor, Anjos Caídos, mas que aqui o tudo que fez foi enfeiar cenas que originalmente seriam muito bonitas. A trilha sonora é muito competente no geral, todos os momentos do filme são acompanhados por alguma melodia ou algum instrumento, mesmo que em volume bem baixo, e isso ajudou muito a criar climas específicos a várias cenas. A trilha como um todo foi bastante alterada em relação à versão de 1994, e sinceramente as músicas originais eram melhores, mas as atuais ainda estão muito boas.

As cenas de ação são poucas, mas foram muito bem-feitas. Não há coreografias muito elaboradas, como de costume nos filmes wuxia chineses, pelo contrário, aqui elas estão super estilizadas, com efeitos de blur e falta de quadros, que dão a impressão de ter sido filmado com câmera de mão, só que muito melhor que todos os filmes que de fato empregam câmeras de mão em cenas de ação, já que você consegue ver tudo que acontece com clareza. Inclusive tem uma parte que simula de forma muito interessante as conseqüências de um golpe fatal, com a imagem ficando escura, o som distorcendo e os objetos ficando embaçados e irreconhecíveis, talvez a melhor sacada do filme.

Os atores também desempenham bem os seus papéis, todos recorrentes de diversos outros filmes do diretor, porém eles pouco podem fazer para dar mais luz ao projeto, já que a maioria das cenas é expositiva e não dá liberdade. O filme é quase inteiro narrado, contando com poucos e curtos diálogos. Os únicos que realmente se superam são a Maggie Cheung, que tem pouco tempo de tela, mas carrega sozinha a melhor cena do filme, e Jacky Cheung, que interpreta um espadachim que fugiu de casa e é perseguido pela mulher, um papel aparentemente sem atrativos mas que esbanja carisma por conta da performance do ator. Os outros são apenas competentes, em graus diferentes, mas nem as melhores atuações poderiam salvar este filme, cujos problemas são estruturais.

Cinzas do Passado é apenas o terceiro filme do Wong Kar-Wai (ou quarto, já que demorou tanto tempo em pós-produção que o diretor filmou no meio tempo o altamente superior Expresso Chungkin), então é compreensível, e até certo ponto perdoável, as várias falhas que ele apresenta, típicas de um diretor ainda em amadurecimento que se aventurou em fazer um filme artístico demais. Porém este Redux é uma vergonha, um caça-níqueis lançado quase duas décadas depois com a pretensão de ser uma versão diferente e que se mostra o mesmo filme recauchutado.

O diretor se deu a trabalho de piorar a trilha sonora e cortar cenas boas, mas foi preguiçoso demais para reorganizar o filme de modo que a nova invenção das estações fizesse algum sentido, mesmo que forçado. Um Wong Kar-Wai de começo de carreira pode até ser perdoado por entregar um filme falho, mas um Wong Kar-Wai macaco velho e mundialmente consagrado, não.

Comentários (2)

ADEMAR FERREIRA BESSA | sábado, 30 de Março de 2013 - 11:03

😎 Achei o filme simplesmente pretencioso, intelectualmente falando, com personagens mal elaborados, enfim, uma salada de dificil compreensão. Lendo a sinopse, tudo é claro, assista porém, e irão ver, a balburdia que se formou. Não gostei e não recomendaria, nem a um pretenso inimigo.

Mateus da Silva Frota | sexta-feira, 21 de Maio de 2021 - 13:28

Boa, muito boa a sua crítica - nem precisa se dizer mais nada além dela, creio.

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