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Críticas

Cineplayers

O inferno diante da câmera.

8,5
É sempre um movimento incontrolável de espiral, aquele em que o cinema se lança quando decide tratar de si mesmo, seja pelas vias da metalinguagem ou através daquilo que simplesmente o constitui – tempo, memória, autoria, quadro etc. –; percursos estes, claro, não necessariamente excludentes um do outro. Incontrolável talvez porque sua feitura é precisamente aquilo a cujo acesso nos deve ser absolutamente negado, tanto em aparato quanto na cena que se constrói. Pareceria óbvio, uma vez que sabemos ter ali o resultado final, o grito satisfeito do corte, a resultante das forças que ''deram certo'', embora o conceito daquilo que se desejou ser atingido possa muito bem sê-lo por meios do deslize, do erro, e por ''erro'' entende-se que o imprevisível, essa instância trêmula que sobreveio, na verdade o faz, e sem sentir, para substituir o que estava escrito, delineado para evanescer do script para a tela. Um descontrole, enfim, ou pelo menos o tipo de descontrole que pula de indesejado e alcança os louros da excelência.

Mas fala-se em espiral porque as curvas do exercício montado por Ferrara em Olhos de Serpente (Dangerous Game, 1993) possuem o mesmo ponto fixo e descendente, incontáveis vezes apelidado de infernal, incontáveis vezes confirmado como exasperante, da viagem sem retorno a que por sorte apenas um, mas muitas vezes todos os seus protagonistas são inseridos sem traje ou proteção alguma senão aquela de seus desejos por salvação, assim como fez o tenente de Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992), e que demarcaria de uma vez por todas o selo desgraçado do diretor. E se o alvo de Ferrara desta vez é a própria arte que o consagra, o rito sacralizante, aqui, de fato não possui traço algum do divino: o tempo inteiro, à distância, ouvem-se sirenes; as luzes estouradas e vibráteis pulsam como o corpo sob entorpecentes; a banda sonora é como que infiltrada por funks e raps – o gueto é a fiel rêmora deste cinema.

Muito se diz que este é um filme sobre o lado obscuro de Hollywood, sobre o avesso do deslumbramento, os anjos marginais e caídos da grande indústria, ao que se faz necessário perguntar: por que um filme precisa ser sobre algo, e não simplesmente ser? Por acaso a urgência de satisfazer o liame entre um comunicado e um entendimento dá a totalidade do filme, ou ao menos a de todos eles? Mas há também um outro engodo subentendido e contra o qual Ferrara, de peito amargo, opera a partir da putrefação de uma fábula: de onde quer que tenha nascido o ideário da feitura cinematográfica como arranjo feliz, como ofício resumido à tentativas e acertos, a uma checagem de técnicas que emprestem à cena a espacialidade perfeita, quadro resoluto da ação, pois lá mesmo o devaneio murchou. Ao inferno também, e sempre, desce o cinema.

Em meio às dezenas de tomadas que o filme (do filme) revela - porque naquilo que não podemos ver, o que fica como resquício ou vaza entre o apagamento da cena e o corte, também há muito concentrado -, há uma em especial que serve como clarão para as centenas de pontilhados dessa espiral movente: Burns (James Russo) interrompe a cena que está em meios de se constituir e explode diante do set, mas em direção à Sarah (Madonna): ''ela não está presente'', grita, esperneia, implora para que vejam o estado deplorável da atriz, que para ele estava simplesmente ausente do que devia interpretar. Mas devia para quem? De acordo com a lei de que autoridade? Aliás, para que ele diga que a atriz não está ali, é necessário que tenha cruzado a linha entre si mesmo e quem interpreta. Ou pior: que o tumulto não tenha se dado porque tempos antes eles haviam transado, emprestando indiscernibilidade ao misto atores/papéis, mas porque Burns, e já não se sabe mais em que posição de fala, de um instante a outro e resultante desse acúmulo de personas, tenha se sentido simples e cegamente responsável pela história na qual se inseriu, criou e não criou ao mesmo tempo. Ora, se é afinal sobre alguma coisa, Olhos de Serpente está mais aliado ao tour de force que é o próprio contar histórias do que sobre qualquer outro comunicativo que dele se queira extrair.

Não à toa, a estética de Ferrara se assemelha a esse aspecto ininterrupto de making of, esse falso empobrecimento da imagem é seu destino mais caro e certeiro. Há um prolongamento, uma sensação de preparo e feitura que abarca desde o pré (quando ainda não há personagem, quando a respiração e o preparo encontram-se nesse limiar da mutação) ao pós-cena (quando ainda há o papel e não foi possível enxugar aquilo que se operou na passagem, no mergulho em direção ao aquoso de si): ou seja, todo o filme tem a funcionalidade de uma droga cujo contágio e descanso são incertos, uma dose pulsante cujo efeito pode muito bem ser não saber quando o efeito vai passar. E, curiosamente, para Ferrara, nunca queremos que ele passe.

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