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Críticas

Cineplayers

Sobre o mistério do periscópio.

8,5

A questão do dispositivo é especialmente interessante em Periscópio, novo filme do diretor Kiko Goifman sobre dois homens que vivem em um prédio abandonado sem contato com o mundo de fora e tem seu cotidiano perturbado por um estranho periscópio que um dia brota do chão da sala e provoca a curiosidade dos mesmos, arrancando-os do cotidiano. O segundo filme do diretor com o teórico e crítico de cinema Jean-Claude Bernardet em um dos papéis protagonistas - sendo Filmefobia (idem, 2008) o primeiro – expõe a questão da observação de maneira incômoda, como se a existência humana fosse antes uma projeção em função do outro do que antes existir sozinho.

Em todos os seus departamentos – narrativa, fotografia, atuação – passam pela questão do olhar, o olhar que aprisiona, restringe e constrange e como o olhar bizarro – o do periscópio, o olho que parece ver tudo, e acaba se assemelhando - dada a interação progressiva com o mesmo – com a própria câmera cinematográfica, que testemunha, extrai, liberta. Viva ali para os personagens, inserida de maneira diegética, a relação entre orgânico e mecânico ganha caráter ambíguo, onde a tentativa de compreender e estimular está em pé de igualdade com a sensação de medo, de elemento bizarro e irracional, tal qual o monolito de 2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: An Space Oddissey, 1968).

Guardadas as devidas proporções, o misterioso bloco negro acompanhava toda a história da humanidade; o periscópio aqui acompanha a relação degradante de dois homens que parecem se odiar e a transformação mediante o elemento do olhar estranho, da testemunha indiferente e o embate entre o racional e o sensorial. A compreensão intelectual falha em todos os níveis, e logo passa-se a e fragmentar a narrativa que, antes apática e episódica, agora vê-se dois corpos compartilhando o mesmo quadro, a interação em profundidade, a transformação do espaço habitado, o contato.

A linha dramática, centrada unicamente na exposição da relação abusiva e sua posterior transformação que se dá apenas com a chegada do elemento intruso, é intensa, rápida e explosiva, sem elementos “normais” que guiem o espectador pela mão ou expliquem de forma didática. O mistério em Periscópio é inconclusivo – e é o que menos importa. Os efeitos do mistério, por sua vez, que criam o grande detonador narrativo que levam o filme à frente.

Filme consciente de sua condição de filme, a observação de Kiko de desintegração e reorganização de uma estrutura falida parece dialogar com o histórico curta Film (idem, 1965), único roteiro de Samuel Beckett para o cinema que tem de protagonista a lenda da comédia Buster Keaton, onde um homem tenta sem sucesso - de maneira tão perturbadora quanto cômica - bloquear qualquer olhar que o ambiente possa  ter sobre si, explorando os signos visuais e sua relação com o corpo vivo. À sua época, a proposta absurda típica do dramaturgo foi fundamental para os debates à época entre intervenção e observação que existia no cinema.

Já os corpos vivos de Periscópio tanto fogem quanto correm em busca do olhar fazem parte de uma corrente de encenação livre, onde um tema se abre em variadas possibilidades. A câmera é preocupada em focar os improvisos, os diálogos, a contemplação. E também planos-detalhes incômodos devido à sua proximidade, descobrindo imperfeições, trazendo à luz a deformidade de formas vagamente humanas que quanto mais encaradas mais fogem de um padrão estabelecido, a exploração de alturas de câmera estranhas, a iluminação ditada em ritmo psicológico progressivo, até um ápice de loucura e de esgotamento de possibilidades que reúnem suas peças disfuncionais.

Goifman provoca um encontro transformador, onde a câmera como o tal invasor misterioso se aprofunda mas não apenas observa; alheia mas não invisível, o olhar sobre aqueles homens assustadores joga luz sobre seus medos, suas carências e seus impulsos. Periscópio é o típico filme contemporâneo, disposto a mostrar suas estruturas, interessado em nos incomodar, nos tirar do lugar de espectador passivo, tornar a narrativa um convite não à catarse individual, ao racionalmente satisfatório, mas antes o compartilhamento de sensações e impressões e a criação e reinvenção do campo cinematográfico como o lugar ideal para confrontar superfície e interior de forma vitoriosamente perturbadora.

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