ATENÇÃO: Nos três primeiros parágrafos do texto à baixo busquei não revelar nenhuma surpresa do filme. Porém, nos últimos três discuto pontos importantes (inclusive o final) da trama de Gravidade. Portanto, leia-os apenas se você já tenha visto ao filme.
Ir ver algum filme em um cinema se tornou uma verdadeira dor de cabeça, especialmente para os cinéfilos. Além de sermos obrigados a pagar um preço cada vez mais alto no ingresso, ainda nos deparamos com pessoas que conversam durante a projeção, usam o celular e comem o filme inteiro, e sem esquecer que não é raro haver problemas técnicos dentro do próprio cinema (já vi goteiras em cima das poltronas, caixas de som que não funcionavam, imagem extremamente desfocada, um som baixíssimo e uma sala que exibiria Argo, mas que acabou com uma cópia de A Saga Crepúsculo – Amanhecer Parte 2). Ainda com todas essas distrações, a experiência de assistir Gravidade na telona (e em 3D) compensa todos esses imprevistos, pelo simples fato de que a sala de cinema é o único lugar que pode imergir completamente o espectador, e para esse novo trabalho do diretor mexicano Alfonso Cuarón isso se torna quase um elemento narrativo, uma vez que a escuridão do filme se mescla com a escuridão do cinema – e você não sabe onde a tela termina ou começa – e o silêncio absoluto deixa as cenas de tensão ainda mais impactantes e claustrofóbicas.
A história tem início quando uma chuva de destroços de um inutilizável satélite russo atinge o ônibus espacial onde estão Ryan Stone e Matt Kowalsky (personagens interpretados respectivamente por Sandra Bullock e George Clooney) deixando-os à deriva no espaço. Esses são, basicamente, todos os noventa minutos de Gravidade. Porém, ao contrário do que se parece, essa simplicidade é uma das grandes qualidades do roteiro escrito pelo próprio diretor ao lado de seu filho Jonás Cuarón: Podendo ser facilmente encarado como um filme catástrofe, Gravidade tem um roteiro que se prende à rotina de inserir imprevistos nos planos bem calculados dos personagens, mas que faz isso da forma mais natural e orgânica possível, se preocupando em não soar repetitivo e se saindo bem nesse sentido.
Apesar disso, um diretor um pouco menos dedicado e eficiente poderia transformar Gravidade em uma obra infinitamente inferior, não importa o quão bom fosse seu roteiro, já que o trabalho primoroso feito por Alfonso Cuarón dificilmente poderia ser reproduzido por outro cineasta: Utilizando de todos os elementos narrativos que o roteiro oferece para criar planos estupendos, o diretor se mostra eficaz ao utilizar a tecnologia 3D a favor da história, sem fazer nenhum movimento apenas para assustar o espectador, uma vez que tudo foi cuidadosamente calculado para que a terceira dimensão não soasse deslocada e inutilizável dentro do filme (e ainda favorece momentos lindos, como aquele em que as lágrimas de Bullock flutuam pelo cenário). O cineasta ainda aproveita de forma gloriosa a possibilidade de a câmera estar inerte no espaço junto com os personagens, mergulhando-a de cabeça para baixo sem respeitar qualquer eixo que um filme passado na Terra respeitaria, e com isso absorvendo de vez a plateia para dentro de sua proposta narrativa, com a essencial ajuda da câmera subjetiva ou dos espetaculares efeitos sonoros (centrados basicamente na respiração forte do elenco).
Outro ponto surpreendente de Gravidade se diz respeito a seus personagens: Enquanto Clooney cria um personagem seguro e autoconfiante, a protagonista interpretada por Bullock se mostra extremamente vulnerável, criando um interessantíssimo contraste de personalidades que se fortalece cada vez que Kowalsky conta uma história e que Stone fica em pânico ao não saber o que fazer numa situação de risco. Aliás, ambas as atuações merecem elogios significativos pela imensa dificuldade imposta pelo roteiro, afinal não é fácil transformar movimentos cuidadosamente coreografados e planejados em ações que soam espontâneas, além do desafio quem vem junto com a ausência de objetos, cenários e outros atores para interagir. Entretanto, o que realmente impressiona dentro das duas figuras vistas em Gravidade é o significado que Matt representa para sua companheira (e como foi dito no início, à partir daqui darei vários spoilers, portanto, apenas continue a leitura depois de ter assistido ao longa): Se analisarmos superficialmente o filme, podemos chegar à conclusão de que George Clooney está ali apenas para ser um coadjuvante de luxo, quando na verdade, ele representa para a protagonista sua ‘única’ salvação, e é por isso que o último momento em que o personagem de Clooney realmente está em tela é tão doloroso de se assistir, afinal a Dra. Ryan Stone está se soltando da esperança de voltar para a casa; e não é atoa que antes de se entregar completamente à morte (em uma das cenas mais lindas do cinema nos últimos anos) seu subconsciente trás Kowalsky de volta para buscar alguma solução para seu problema, o que me leva a concluir que Ryan nunca precisou realmente de seu companheiro, mas apenas do sua principal característica: Auto confiança.
Contudo, um dos aspectos mais fascinantes do filme está em seu sutil lado simbólico, que pode ocasionar interpretações opostas que, de certa forma, podem se completar em futuras discussões em torno da narrativa: Para alguns Gravidade é um filme sobre a fragilidade humana, para outros é um longa-metragem que não quer dizer nada de especial; em minha análise pessoal Gravidade fala sobre o renascimento de uma personagem, que antes de tudo não via significado em continuar a viver (algo que é consolidado pela ótima cena em que Ryan expõe em um diálogo as horas que passava dentro de seu carro), mas que aos poucos recupera a vontade de voltar pra casa e recomeçar a vida. E seguindo essa lógica de pensamento várias situações ganham um significado mais forte e mais profundo quando analisadas: O cabo que prende Ryan à estação espacial acaba representando o cordão umbilical que garante sua sobrevivência; ou como o momento em que é estabelecida uma comunicação com uma pessoa na Terra – que envolve um bebê e uma cantiga de ninar; além, é claro, do memorável quadro de Sandra Bullock em posição fetal.
Assim, além de construir uma atmosfera de tensão primorosa, ter uma câmera milagrosa e de ser um avanço técnico impressionante no cinema, Gravidade cria um ciclo simbólico interessantíssimo, que se encerra em sua última sequência: “A personagem interpretada por Sandra Bullock finalmente atingir o solo terrestre. Ela sente lentamente o barro, com o rosto encontrando-o, e aos poucos tenta se levantar. Desequilibrada e ainda se acostumando em ter terra firme para pôr os pés, ela pende para um lado e para o outro, quase caí, até que consegue dar seus primeiros passos. Enquanto isso, a câmera faz a curiosa decisão de captar a personagem de baixo para cima, colocando o céu azul e repleto de nuvens em segundo plano. E, logo em seguida, vemos a vasta ilha que simboliza a salvação da protagonista, repleta de uma natureza verdejante de encher os olhos.” E com esses simples minutos finais Cuarón confirma o significado filosófico do filme (a morte e o nascimento espirutal) da maneira mais criativa e engenhosa imaginável, encerrando uma das obras mais notáveis e instigantes do cinema moderno.
Concordo plenamente com sua análise! Estou escrevendo uma minha também e espero que você comente para discutirmos melhor essa obra-prima.
Mas adianto que minha leitura é justamente todo o processo simbólico de concepção até o nascimento
Estou louco pra ver esse filme...