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Críticas

Cineplayers

O clássico e o moderno em Abel Gance.

9,0
'Cinema de gênero' é uma definição que compete à organização da indústria cinematográfica americana no início do século passado. No entanto, essas rotulações -  subprodutos dos gêneros clássicos da dramaturgia (comédia, tragédia) e, em si mesmos, novas estéticas nascidas juntamente com a arte cinematográfica – também se apresentam em filmes fora desse eixo central da industrial cultural. Au secours! (1924, 18’, Abel Gance) mescla a modernidade genérica do terror com a comédia – em todos os seus amplos sentidos.

Exercício de montagem, narrativa e cinematografia, seu argumento é um lugar comum das histórias de terror: um homem desafia qualquer um a passar determinado período de tempo numa casa supostamente mal-assombrada. Um desafiante se apresenta e acaba levando a própria coragem ao limite, e muitas vezes sucumbe, perdendo a aposta. Esse tipo de história se repete e é retrabalhada diversas vezes na arte literária, nos quadrinhos e no cinema. É possível referenciar o próprio mito de Perseu e o Minotauro como uma das raízes desse tipo de enredo.

A concepção de autoria cinematográfica moderna – advinda dos trabalhos críticos da Cahiers do Cinema - é focada principalmente na direção da cena, o mise en scéne. É posterior ao filme de Gance. Mas essa não é uma definição fechada. É possível observar as marcas de um ‘cinema de autor’ neste curta, principalmente em sua montagem, aproximando-se das teorias soviéticas do Construtivismo.

Gance é o grande expoente do Impressionismo francês, e em vários momentos a ação mostrada na tela é misturada ao próprio movimento da imagem na película. Uma cena que ilustra bem isso é quando o protagonista, interpretado por Max Linder, está pendurado em um lustre no telhado. A imagem na tela se mexe com o balançar do lustre, causando uma impressão que transcende à ação, passando para o espectador a sensação provável do personagem de Linder naquele momento através da própria projeção. Uma exteriorização das reações corpóreas.

O Impressionismo, assim, é uma estética que busca uma aproximação da realidade através do sensorial. A verossimilhança - para muitos um dos principais indicadores da qualidade de um filme - pode ser alcançada por diversos caminhos. Em Au secours!, a narrativa se junta à montagem, garantindo um resultado, atual e louvável dentro da Sétima Arte, pois,  apesar da aparente sobrenaturalidade farsesca, as sensações e reações, mesmo os exageros cômicos, são absolutamente compreensíveis para quem está assistindo. 

O elemento de horror presente no filme é um retrato da época em que foi produzido. O assustador parece sinônimo de grotesco, ‘feio’, ‘fora do padrão’, ‘exagerado’. Os monstros da casa e o homem deformado que aparece junto à cama da namorada de Linder (Gina Palerme) representam a ameaça através de sua aparência física. Fritz Lang brinca com essa concepção em uma cena do seu famoso M – O Vampiro de Dusseldorf (1931), quando o psicopata interpretado por Peter Lorre faz uma careta para o espelho, denunciando sua condição intrínseca de lobo em pele de cordeiro. Outro clássico que subverte essa noção é Freaks (1932, Tod Browning), onde os deficientes físicos explorados no circo de aberrações são o contraponto ético e moralizador do enredo.

Ou seja, não é na narrativa que está a contribuição do filme – mudo - de Gance. Sua decupagem e montagem que são, em si, um exercício unicamente possível dentro da feitura do cinema. Só através da arte cinematográfica as experimentações vistas em tela são possíveis, em movimento, como um simulacro palpável e real do pesadelo. O filme nessa época existe fisicamente no objeto da película, na impressão da luz através da fotoquímica, como diria André Bazin. Portanto, a sua ilusão é parte do mundo palpável, não estando presa apenas ao ato da projeção. Contém várias camadas de ‘verdade’.

É difícil quantificar os méritos desta realização de Gance. Enquanto entretenimento, o filme é extremamente eficiente. Consegue prender a atenção até o fim. Seu ritmo – que condensa a hora completa dentro da casa assombrada do desafio imposto pelo Conde de Mornay (Jean Tolout) em menos de 15 minutos – é dinâmico e bem distribuído. Enquanto arte, a técnica-estética impressionista é aplicada de forma magistral na edição, prenunciando – juntamente com J’Accuse (1919), outra realização de Gance - a obra-prima do autor, Napoleão (1927).

Au secours!, por sua importância, é um filme que deve ser visto e revisto. Redescoberto muitas vezes por conter dentro de si várias concepções da arte do cinema. Um filme para vários níveis de interesse, desde o mero entretenimento ao olhar crítico da obra. Um trabalho aparentemente despojado, mas contundente em forma e estilo.

Comentários (5)

Marcelo Queiroz | terça-feira, 19 de Janeiro de 2016 - 21:27

Paulo, assista Halloween logo 😁

Felipe Ishac | terça-feira, 19 de Janeiro de 2016 - 23:51

excelente crítica fillipe.

Pedro H. S. Lubschinski | quarta-feira, 20 de Janeiro de 2016 - 08:47

Não conhecia o curte, vi a crítica e resolvi ver antes de ler e, uau, bom demais mesmo.

E o texto ficou excelente, bela estreia, Fillipe.

Eliezer Lugarini | quarta-feira, 20 de Janeiro de 2016 - 23:04

Que legal esta crítica. Um dos meus filmes favoritos da década de 20 . Lembro de ter ficado muito impressionado com a montagem e mise en scéne de Gance. Ainda tenho que assistir a Roda e Napoleão mas tive dificuldade em encontrar.

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