O Cisne de Freud
“Eu me senti perfeita”
Cisne Negro traz a história de Nina (Natalie Portman), uma bailarina assustadoramente perfeita que promete envolver o espectador do início ao fim do filme. Integrante da companhia de dança de Nova Iorque, Nina tem sua vida totalmente consumida pela profissão, a fim de conseguir o tão sonhado status dentro do grupo. Esse grande desejo, é apoiado de forma muito zelosa por sua mãe, a ex-bailarina Érica Sayers (Bárbara Hershey). Thomas Leroy (Vicent Cassel), diretor artístico da companhia, anuncia que está a procura de uma nova garota para substituir Beth Macintyre (Winona Ryder), a primeira bailarina que irá se aposentar, Nina vê surgir a grande oportunidade de sua carreira. Apesar de ser a principal escolha para a produção de abertura da nova temporada, O Lago dos Cisnes, a bailarina veterana tem uma concorrente: a jovem e sensual Lily (Mila Kunis), que impressiona muito Leroy.
Por meio de estudos feitos sobre a mulher e a questão da feminilidade, a figura feminina frágil torna-se um ideal. Uma interessante representação desse ideal, que aparece logo na primeira metade do século XVIII, é a figura da bailarina; uma imagem etérea, desencarnada, assexuada, que constitui o ápice do ideal romântico da feminilidade.
A imagem da bailarina aparece curiosa, não só por se constituir numa espécie de ícone da mulher frágil e delicada, mas também porque a bailarina não se forma sem um adestramento profundo de seu corpo. A técnica do balé clássico desenvolvida no final do século XVIII, e aprimorada no período oitocentista, incide principalmente sobre as mulheres que passaram a ser as figuras centrais das representações. Até o final do mesmo século, ao contrário, eram os homens que detinham esse papel. As mulheres tinham pouca participação e nenhuma tradição nessa arte. Somente com o aparecimento dos grandes balés românticos a figura frágil da bailarina começa a roubar a cena. Quanto mais uma bailarina conseguisse encarnar, por via de um trabalho corporal intenso, esse ideal de delicadeza e suavidade, mais ela se aproximava do ápice do sucesso e do reconhecimento de seu talento. A bailarina aparece como o ideal estético do corpo feminino, ideal esse que encobre o que de mais carnal existe no corpo da mulher. A luminosidade de sua figura torna invisível e impensável as características tidas como “repugnantes” do corpo feminino, seus humores sangrentos, suas carnes desmedidas. O delineamento cada vez mais forte das diferenças sexuais desenhou um modelo de feminilidade onde o pior para uma mulher era ser julgada repugnante, aviltada, feia, marcada pela parte corporal de sua identidade. O melhor, ao contrário, consistiria em ser considerada bela, termo que implicava não só o físico, mas o conjunto de virtudes
femininas como o pudor e a castidade. A bailarina exprime esse ideal que estetiza o corpo feminino, delimitando-o e renegando todo o aspecto sexual, exuberante e transbordante da feminilidade.
Desde seus primeiros estudos Freud vai se deparar com a questão feminina. São as mulheres, as histéricas, que vão levá-lo a desenvolver seus primeiros trabalhos e a fundar a psicanálise. É interessante notar como sua visão sobre o sexo feminino vai sendo modificada ao longo de sua obra. Freud pensa e reflete o problema da mulher e da feminilidade desenvolvendo diferentes perspectivas. Suas elaborações são de extrema riqueza, embora cheias de conflitos e contradições, e vão levá-lo a se declarar inseguro em relação às sua teorias sobre a mulher em sua famosa conferência de 1932.
Na perspectiva do jovem Freud, a mulher é vista como diferente do homem, embora essa diferença não seja tratada por ele de uma perspectiva negativa, como acontece em grande parte dos discursos psiquiátricos dessa época. Ao contrário, em seu modo de ver, a mulher está situada do lado da bondade, da beleza, do afeto, das qualidades que a predispõem à maturidade. Sua concepção das diferenças entre homens e mulheres é herdada do pensamento iluminista e pressupõe uma diferença de essências. Nesse sentido, concebe as mulheres como dotadas de menor agressividade, maior passividade e docilidade, enquanto o homem seria mais ativo e agressivo.
À medida que elabora suas teorias sobre o desenvolvimento libidinal infantil, Freud começa a desenhar um novo perfil feminino, onde a mulher não será mais considerada apenas como uma vítima da cultura, mas também como uma ameaça ao homem e à própria cultura. Outro aspecto que nos parece fundamental é que a mulher passa a ser desenhada como uma figura ameaçadora também em função de sua teoria da sexualidade, que ora situa a mulher como castrada e invejosa, ora como fálica e poderosa. Freud reedita então dois estereótipos do século XIX: tanto o da mulher insatisfeita com seu lugar passivo, que inveja o homem e sua liberdade, quanto o da mulher fatal, a anti-Madona, aquela que se torna uma ameaça para a família e a sociedade. Mas nas duas vertentes a mulher deixa de ser o “sexo frágil”, passando a ser representada como um sexo forte, dotada de um intenso poder sobre a fantasia e a economia libidinal masculina.
A mulher sonhada por Freud é, antes de mais nada, a mulher castrada, a possibilidade de potência dá à feminilidade um caráter enigmático e ameaçador. A mulher não seria então apenas um ser frágil, dotada de uma sexualidade débil, ela se torna, no discurso freudiano, uma figura ambivalente, cuja vida erótica é denominada por um contraste: o contraste entre a reserva e a sedução, entre uma ternura delicada e uma sexualidade implacável, exigente, que pode destruir o homem. Para Freud, a vida erótica das mulheres, tanto nos mitos quanto nas fantasias infantis, seria pensada como um contraste entre ternura e sensualidade.
O enigma feminino para o homem talvez seria exatamente o fato de na imaginação masculina coexistirem uma feminilidade boa, passiva, amorosa, castrada, masoquista, de um lado, e a mulher destruidora, potente, fálica, castradora, sádica, de outro. A personagem Nina se insere nessa dualidade, ficando explícito na representação do Cisne Branco e o Cisne Negro. A sexualidade feminina assume no discurso freudiano a representação de uma força que pode gerar tanto o bem quanto o mal, e a mulher passa a ser vista como o sexo que pode assumir qualquer posição, que pode ser qualquer coisa, vítima ou algoz, terna ou sensual, que deixaria o homem eternamente intrigado e em busca de sua verdadeira essência.
Em relação ao dito masoquismo da mulher, a idéia de submissão e servidão já justificava plenamente essa denominação “masoquismo feminino”, mesmo que esse masoquismo não fosse considerado patológico. O primeiro é que Freud fala de um duplo sacrifício ao qual a mulher deve se submeter para se tornar verdadeiramente feminina. Embora a idéia de sacrifício não tenha necessariamente que levar à de masoquismo. A capacidade de sacrifício feminina seria a porta de entrada para o masoquismo. Um segundo ponto é que Freud aprofunda a associação entre masoquismo e mulher, à medida que inscreve o masoquismo no desenvolvimento libidinal feminino. Isso fica evidente , por exemplo, quando supõe que a agressividade das mulheres acaba se internalizando sob a forma de impulsos masoquistas:
A supressão da agressividade das mulheres, que lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos masoquistas, que conseguem, conforme sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro. Assim o masoquismo, como dizem as pessoas, é verdadeiramente feminino. (S. Freud, A Feminilidade, 1932)
Embora de forma ambígua, colocando o masoquismo da mulher entre uma disposição inata e o processo cultural, Freud não se furta a corroborar a idéia que a ciência médica e imaginário social preconizavam sobre as mulheres. Os componentes pulsionais agressivos seriam primariamente dirigidos a objetos externos, sob a forma de sadismo. Num segundo momento esse sadismo se voltaria contra o próprio ego, a partir de um sentimento de culpa e piedade, sendo então chamado de masoquismo.
O que vejo de espetacular no trabalho do diretor Aronofsky e dos roteiristas, é como eles conseguiram aprofundar o filme numa análise em cima da personagem e, esta conseguir representar com perfeição toda a força, mistério e vigor que se encontra no feminino. Dissecar num filme o labor do artista seja no teatro, na dança, no cinema; somente quem possui paciência e perspicácia para analisar a figura da mulher – como um Bergman fez – pode trazer para as telas um verdadeiro retrato do universo feminino. Concluindo, retomo novamente Freud quando este explicita a existência de duas dimensões constitutivas da pulsão, dimensões estas que se contraporiam ativamente no sujeito: quantidade x qualidade; força x representação; energia x símbolo. Pulsão seria exigência de trabalho, força e pressão, sua inscrição no universo das representações se realizaria pela mediação do Outro, que possibilitaria objetos de satisfação e um sistema de interpretações que regularia o oferecimento desses objetos.
Nesse sentido, se existe um “excesso” pulsional que permanece indomável, cuja inscrição no universo simbólico não é imediata, desenha-se em Freud uma figura de sujeito no qual o traço básico é o desamparo. Essa idéia de desamparo, paralelamente à de masoquismo erógeno vai possibilitar que Freud articule a noção de feminilidade.
Por Thiago Machado
Bibliografia:
Nunes, Silvia Alexim. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: Um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
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