Como David Lynch retornou a Twin Peaks
David Lynch fez 74 anos em 2020, comemorando o aniversário lançando o curta-metragem What Did Jack Do? na Netflix, onde interroga um macaco (!) por suspeita de assassinato. Mais um filme singular numa carreira igualmente singular, que teve um de seus auges em 2017, com Twin Peaks: The Return, série-sequência do lendário sucesso que deslanchou a carreira do cineasta.
David Lynch testou os limites da televisão entre 1990 e 1991, onde partindo de uma pergunta inicial – quem matou Laura Palmer? – descortinou um mundo perigoso de suspense e horror atrás da fachada de melodrama colorido e comédia de costumes. Brigas com a ABC levaram a um cancelamento prematuro ainda na segunda temporada, mas o legado permaneceu.
Em 2017, o retorno com a Showtime foi amplamente bem recebido, e para muita gente influente como o diretor Jim Jarmusch (Sobre Café e Cigarros) e a revista Cahiers du Cinema, foi o grande acontecimento audiovisual da década, quiçá do século. Mas como se deu esse retorno?
O texto a seguir contém spoilers.
“Eu o verei de novo em 25 anos”
Mas Twin Peaks era uma lenda interrompida.
O final brusco em 1991 foi um soco no estômago. Todos os ganchos ficaram em suspenso. Na maior de todas as reviravoltas, o agente especial Dale Cooper ficou preso em uma dimensão paralela enquanto sua cópia maligna retornou ao nosso plano de existência.
Apesar de tantas cenas memoráveis e uma mitologia que fascinou gerações de fãs, ampliadas posteriormente por filmes (Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer e Twin Peaks: The Missing Pieces) e livros (A história secreta de Twin Peaks e O Diário Secreto de Laura Palmer), ainda restou a sensação de que o mundo nos devia o final da história daquele universo.
Quando voltou, Lynch provou que continuava, com sua câmera distante e estática, com os efeitos especiais brutalmente simples à lá Meliés e com os experimentos sensoriais com luz e som, tão formalmente desafiador quanto antes.
No seu retorno, os 25 anos entre uma temporada e outra foram trabalhados dentro da dramaturgia: Lynch criou um novo e misterioso assassinato, introduziu dezenas de novos personagens e trouxe de volta antigos personagens quase irreconhecíveis. Mas, acima de tudo, explicou muita paciência. Para a frustração de muitos, tudo era atmosfera e ambientação, pequenos pedaços de uma composição para lá de elaborada.
“Essa é a água. E esse é o poço. Beba tudo e desça”.
Já um dos momentos mais icônicos da filmografia de Lynch, o oitavo episódio da terceira temporada foi o que mais recebeu aclamação crítica e também um divisor de águas para a expansão do cânone de Twin Peaks.
Narrativamente falando, o episódio em preto-e-branco. Em 1945, a primeira bomba é lançada no Novo México, o que cria uma orbe com o rosto de Killer BOB, uma entidade maligna capaz de influenciar pessoas. Como resposta, outra entidade, conhecida como “o Bombeiro” cria uma orbe com o rosto de Laura Palmer, que em Twin Peaks seria conhecida tanto como um exemplo de menina perfeita como uma jovem com segredos obscuros. Nesse momento, a série que sempre brincou com os gêneros assumiu seu aspecto mais metafísico, debruçando sobre a origem da sua mitologia e refletindo sobre seus conceitos de mal e bem.
Até então, a série continuava a mexer com nossa percepção através dos contrastes entre gêneros. Por exemplo, aqui Kyle MacLachlan viveu um papel duplo, tanto como um sósia maligno de Dale Cooper possuído por Killer BOB e responsável pelos momentos mais perturbadores da série; e também o verdadeiro Dale, preso à persona de Dougie Jones, uma figura inocente e de sorriso frouxo no momento comédia de Twin Peaks. Ao mesmo tempo em que vivia o vilão, o ator também era seu contraponto, uma espécie de personagem do cinema mudo, tal qual Buster Keaton: o reflexo da inocência contra a adversidade. Junto com a esposa Janey-E (Naomi Watts), ambos protagonizaram alguns dos momentos mais cômicos da série.
Mas com o episódio oito, tudo mudou e uma última cortina foi aberta: de que essa série, organizada a partir de contrastes (a cidade que é de uma forma de dia e outra de noite, com personagens como uma rainha do baile viciada em drogas, um homem de família que possui um bordel, os bad boys sensíveis, os amantes fiéis…), nasce de um conflito primordial: a luta entre o Black e o White Lodge, encarnada no chão da sala de espera, onde vemos alguns dos principais personagens da série.
E se nada nos preparou para o retorno, o que dizer do final?
Um anti-final
Pela segunda vez desde o final de Família Soprano, uma série fica reconhecida por “terminar sem fim”, cortado no meio antes de uma catarse dramática final. Na terceira temporada de Twin Peaks, David Lynch em certo nível seguiu os passos de David Chase a partir do momento que sua história descobriu-se mitológica. Como mitológica, tornou-se circular, não progredindo linearmente, mas saindo do ponto de partida apenas para voltar ao mesmo.
No caso, Chase descobriu Tony Soprano como o arquetípico gângster, moldado pela violência, que sobreviveu à muitos atentados contra a sua vida, mas que sempre pode morrer no próximo, pois essa é a figura trágica do arquétipo do fora-da-lei no audiovisual. Não importa se ele vai sobreviver ali ou não; ele está destinado a viver a mesma situação de novo.
Encarnando essa ideia grega de mito, de história com um simbolismo atrelado, vendo inclusive pela perspectiva de Joseph Campbell de sempre ter existido o mesmo herói, mas que nós sempre trocamos o rosto (ler O Herói de Mil Faces para mais detalhes), Lynch finaliza seu Twin Peaks assim como Chase terminava seu Sopranos, cortando uma ação pela metade.
Mesmo com boatos de quarta temporada, continuar a partir de sua cena final seria redundante, pois Twin Peaks transcendeu a linha da história para virar um embate eterno de Bem e Mal, onde a ação de um exigirá a reação de outro.
E dessa forma mitológica, Dale Cooper, por sua vez, ao atuar (literalmente, no caso do ator) dos dois lados, continuará como uma espécie de xamã, ou um intermediário entre as concepções de forças opostas que todos nós carregamos. Ou como diz a rima-chave da série, “Da escuridão do futuro passado, o mago anseia ver. Um canto entre dois mundos: o fogo caminha comigo“.
A televisão do século 21 nos deu a oportunidade de entender narrativas populares como recriações mitológicas infinitas, não encerradas em si como uma linha reta, mas fadada a voltar ao seu começo como encarnações dos “heróis de muitas faces” Dale Cooper, uma síntese do(s) universo(s) que habita.
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