O faroeste existencialista de Jarmusch
Jim Jarmusch é um sujeito de estilo e olhar peculiar, quase estrangeiro em relação ao seu país de origem. Portanto, não é à toa que seus personagens são deslocados, estrangeiros e outsiders que não pertencem ao ambiente no qual estão inseridos durante a projeção. Em “Estranhos no Paraíso” (Stranger Than Paradise, 1984) há a jovem húngara Eva, que viaja para a casa do primo na América; “Daunbailó” (Down By Law, 1986) segue a amizade feita por três criminosos na cadeia, um deles italiano; Em “Flores Partidas” (Broken Flowers, 2005), o protagonista é americano, mas precisa viajar de estado a estado em busca da possível mãe de seu filho desconhecido. No entanto, além da fascinação por tipos desajustados, Jarmusch também se mostra um admirador do percurso de seus heróis: ele não quer saber das resoluções e reviravoltas finais, mas sim do caminho percorrido por seus personagens naqueles locais desconhecidos. Jim Jarmusch é um artista interessado na jornada, e não no seu desfecho.
Em 1995, o diretor lança “Dead Man” (idem, 1995). O filme não foge do seu estilo, ao contrário, o eleva a novos patamares. O outsider da vez é William Blake (Johnny Depp), um jovem contador que viaja de Cleveland à cidade de Machine para assumir um cargo que lhe havia sido prometido em uma empresa metalúrgica. Após chegar ao local, e se envolver em uma série de desgraças, Blake acaba um homem procurado e mortalmente ferido. A única maneira de sobreviver é contando com a ajuda do misterioso índio chamado Ninguém.
Ao seguir uma linha de faroeste pós-moderno, Jarmusch reconstrói o gênero cinematográfico e cria uma obra única, que só poderia ter sido concebida por ele. Repleto de metáforas, “Dead Man” é uma história sobre a jornada espiritual de Blake. Nos minutos iniciais isso já fica evidente com a breve participação do (subestimado) ator Crispin Glover como o maquinista do trem no qual o protagonista viaja. Glover, com a cara suja do carvão que move a locomotiva, surge como um guia. Ao mencionar situações que acontecem exatamente no final do filme, o personagem aparece como uma espécie de barqueiro Caronte da mitologia grega, responsável por levar almas a Hades, deus do submundo. Aqui, seu barco é o trem. Estaria ele, então, levando Blake para as trevas? “Isso não explica porque você veio até aqui ao inferno”, diz o maquinista em certo momento, para logo após concluir a passagem metafórica de Jarmusch com a frase “Você encontrará seu túmulo”. O começo do filme seria uma espécie de passagem post-mortem, o verdadeiro final da história de William Blake? Não importa, Jarmusch quer nos mostrar a jornada.
De boa índole e mente pura, Blake entra nesse universo corrompido. Quando encontra a arma na cama de Thel (Mili Avital), se mostra surpreso. Não se trata de algo pertencente ao seu universo, mas para a jovem ex-prostituta e agora vendedora de flores de papel, “aqui é a América”, frase que justifica a violência da época. O mesmo ocorre com os inúmeros personagens com quem se depara pelo caminho. Todos pedem por fumo, mas Blake, ser incorruptível (até o momento), não fuma. O aspecto da trama começa a mudar quando encontra Ninguém e, com ele, segue em uma viagem existencial. O ápice da transação acontece na cena em que Blake encontra um cervo morto com um tiro no pescoço. Ao tocar o sangue do animal e em seguida o seu próprio ferimento, ele vê que, mesmo sendo criaturas diferentes, tanto ele quanto o cervo sangram de maneira igual. Está concluída a transformação de homem branco para espírito indígena de William Blake. Ele aceita o criminoso que teve que se tornar para salvar sua vida. A partir de então, as rosas feitas de papel de Thel carregam um significado alegórico: certas coisas podem ser bonitas, mas elas não são reais. Blake vê que sua vida anterior era uma mentira, que é preciso se desapegar de todos os aspectos materiais para enfim seguir em frente.
O elenco é formado por grandes atores – que não se importam em fazer apenas pequenas participações, revelando respeito pela obra do autor: Gabriel Byrne, Billy Bob Thornton, Jared Harris, John Hurt, Alfred Molina, Gary Farmer, o já mencionado Glover, o músico Iggy Pop e o eterno Robert Mitchum. Todos excelentes ao som dos acordes da guitarra de Neil Young, responsável pela trilha sonora, que, junto da incrível fotografia em preto-e-branco de Robby Müller, só torna a película ainda mais hipnotizante. “Dead Man” é o espírito metafísico e transcendental do faroeste clássico, um filme com diversas camadas, trabalho excepcional e de profundidade notável de Jim Jarmusch.
Gabriel voltou a escrever, que bom. Ótimo texto. :)
haha, tempo de mudanças, Heitor.
Começar do zero com os comentários.
Fantástico texto, parceiro. Parabéns!