Dentro do espectro da cifra oculta do direito penal, nenhum crime ganha mais relevância que os relacionados ao abuso sexual. O conjunto de percalços sofridos pela vítima, em um caminho que perpassa pela insensibilidade dos que compõe as instituições e pela ausência de rigoroso auxílio psicológico, tem como consequência perpetuação de traumas irreparáveis. Se por um lado as sequelas deixadas por essa modalidade de crime são extremamente mal interpretadas por membros do judiciário, carecendo substancialmente de profissionais da psicologia, a arte pôde nos brindar, com “Mystic River”, com uma das abordagens mais dolorosas e realistas com relação a tais efeitos de caráter permanente.
Essencialmente, o abuso sexual surge como um mote para um enredo complexo, mas ganha dimensões e camadas de conteúdo no decorrer da obra que dificilmente podem ser ignoradas. O sequestro e estupro de Dave (Tim Robbins) é o acontecimento trágico que resulta no distanciamento de três amigos próximos de infância, um grupo formado por Jimmy (Sean Pean), Sean (Kevin Bacon) e pelo próprio Dave, que, acometido pelos traumas e pelas cicatrizes, torna-se um adulto recluso, tímido e extremamente confuso. Separados totalmente, se reúnem novamente por circunstância de outro acontecimento traumático, que modificará radicalmente a vida de todos: o brutal assassinato da filha de Jimmy.
Percebe-se, assim, o primeiro dos aspectos fundamentais a se ressaltar ao analisar o trabalho de Clint Eastwood é a capacidade de criar um clima constantemente opressivo, como um reflexo direto do estado de espírito em que se encontram os personagens. A fotografia escura retrata o subúrbio de Boston não apenas como um espaço, mas como uma testemunha da busca progressiva pela verdade acerca da tragédia que viria a realinhar a história dos três protagonistas. Nesse ponto, o estilo cultivado flerta bastante com o thriller policial em sua estrutura, na qual as pequenas pistas deixadas pelo roteiro vão, aos poucos, sugerindo sutilmente o desfecho do caso principal, sem nunca, no entanto, se entregar à previsibilidade.
Logo Clint, tão reconhecido por seus filmes de gênero, utilizou-se justamente da estrutura do thriller policial para condensar elementos do drama psicológico, residindo, aí, a força motriz do filme. A construção dos personagens é realizada a partir de micro revelações a respeito de seu passado, que vão pouco a pouco se costurando ao longo do filme. À exceção da natureza melancólica de Dave, cuja motivação é esclarecida desde o início, a secura de Sean é sugerida como uma consequência de uma crise conjugal, que continuamente o abala. Por parte de Jimmy, o roteiro ganha seu contorno mais forte (possibilitado pela interpretação demolidora de Sean Penn): inicialmente apresentado como um pai de família e trabalhador pacato, o curso das investigações do assassinato de Katie apresenta um passado criminoso, do qual nunca teria conseguido (ou tentado) se desvincular totalmente. Tais características são todas reforçadas por personagens coadjuvantes, que, em um mérito narrativo de Eastwood, não proliferam em sub-tramas desnecessárias, mas acrescentam dramaticidade à trajetória dos protagonistas.
No âmbito das relações, inclusive, a inteligência do diretor aflora: perceber a crescente de desconfiança e medo de Celeste (Marcia Gay Harden), esposa de Dave, em relação à possibilidade do parceiro ter cometido um crime brutal, é angustiante. O distanciamento é realçado na medida em que o diretor filma os conflitos do casal em ambientes escuros, claustrofóbicos, conferindo um máximo de verossimilhança às situações retratadas.
Se, por todo o destacado anteriormente, a direção é primordial na construção do ambiente de sofrimento e incerteza, as interpretações de Sean Penn e Tim Robbins elevam a obra para o seu ápice dramático. Ao transformar Dave no principal suspeito do crime, o roteiro fornece substrato para o conflito permanente entre as duas personalidades, contexto em que reside a potencia das interpretações. A figura criada por Sean Penn é explosiva, mas frágil, sujeita às feridas proporcionadas pela violência posto que o sofrimento demonstrado por Jimmy atinge seus ápices em dois momentos chave: a descoberta do assassinato da sua filha e o diálogo que mantem com Dave em uma varanda: na primeira situação, Penn emerge com o choque, a brutalidade, enquanto na segunda demonstra o sofrimento cru, palatável, a face mais melancólica do personagem. A dimensão humana conferida a Jimmy confere um personagem multidimensional, capaz de atos de violência e ternura em iguais proporções.
A interpretação de Robbins oferece o contraponto à de Penn. Dave é concebido como um personagem confuso, triste, de natureza profundamente melancólica. Diferentemente de Jimmy, cujo passado vai cuidadosamente sendo dissecado no decorrer da narrativa, o elemento fundamental para compreender a personalidade de Dave é apresentado justamente na abertura do filme. Nesse ponto, a interpretação de Robbins é precisa desde o princípio: a voz embargada, o semblante triste e a postura em cena remetem à presença de um homem traumatizado, sem perspectivas de superação para com os acontecimentos que o machucaram. E, justamente, o constante medo e dificuldade de abertura decorrentes do estupro que sofreu são os elementos que conduzem Dave a um fim trágico, culminando no espetacular clímax entre Penn e Robbins.
Como todos grandes cineastas, pode-se dizer que Eastwood tratou de temas, em particular, que foram fundamentais para identifica-lo enquanto um cineasta de alto nível. Em “Unforgiven”, “Million Dollar Baby” e “Gran Torino”, é possível identificar seu fascínio pelo envelhecimento. Em “Mystic River”, por outro lado, o envelhecimento cede espaço para a passagem do tempo, ou melhor, para tratar das cicatrizes deixadas por experiências traumáticas, e como cada personagem, conforme seu desenvolvimento lida com as mesmas. O final, após o clímax, pode aparentar desnecessário, dado o poder da cena à beira do rio, mas o diálogo de Jimmy e Annabeth, sua esposa, é revelador na medida em que demonstra a constante busca de justificativas e amenizações do personagem de Penn para conviver com a radicalidade de suas atitudes. Nos pequenos momentos de intimidade, residem também as preciosidades dessa joia de Clint Eastwood.
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