Não é difícil ou raro, de maneira alguma, que as circunstâncias da História encontrem as circunstâncias do cinema. Muitos bons filmes são feitos dessa matéria histórica. E vemos isso acontecer desde o cinema independente, temática e formalmente engajado com pautas políticas contemporâneas, até as principais produções de Hollywood, quando apostam em uma boa leitura do presente. Mas também acontece – e esta já é outra questão, totalmente diferente – de um filme ser interrompido pela História. E é este segundo caso que precisamos reconhecer para falarmos de Cabra Marcado para Morrer (1984).
Em 1962, João Pedro Teixeira, liderança das Ligas Camponesas, no estado da Paraíba, é assassinado. Na mesma época, a UNE Volante, de que o então jovem documentarista Eduardo Coutinho fazia parte, atravessava o Nordeste brasileiro registrando as contradições entre o subdesenvolvimento e o imperialismo, segundo as expressões usadas pelo próprio grupo. Pouco tempo depois, Coutinho dá início à direção de um filme que reencena a vida de Teixeira e as circunstâncias que levaram a sua morte. Em 1964, esse filme é interrompido.
Vinte anos depois (como nos indica o título da obra em inglês, Twenty Years Later), Coutinho volta para a produção não terminada e decide buscar os atores que trabalharam com ele na época e que então faziam parte das Ligas Camponesas. Essa não é, no entanto, a história sobre um filme. É a história de um filme, no que Coutinho transforma esse processo de recuperação na matéria-prima do documentário Cabra Marcado para Morrer. Este trabalho, no entanto, é completamente construído à sombra do período em que não existiu filme nenhum, é sujeito desse hiato. Esses “vinte anos” dos “vinte anos depois” – do título internacional – têm um nome, e esse nome está marcadamente presente através da obra.
A Ditadura Militar, que teve início em 1964, começou a se flexibilizar em 1979, com a presidência de João Batista Figueiredo e a Lei da Anistia. Foi a Ditadura que interrompeu Cabra Marcado, e o fez de diversas formas. Primeiramente, determinou o encerramento da primeira tentativa de produção, nos anos 1960. E, por fim, interrompeu-se sobre o filme, como uma cicatriz que o atravessa. Entre esses dois gestos de interrupção, no entanto, há um outro (ou muitos outros), guardado pelo hiato que assombra a obra e a nomeia. Refiro-me ao conjunto de eventos que caem sobre a vida dos personagens e alteram as suas rotas, fazendo com que Coutinho os reencontre em outros lugares, como outros sujeitos, diferentes daqueles a quem ele foi uma vez apresentado (vinte anos atrás, como esse marco temporal se faz sempre presente).
A trajetória de Elizabeth Teixeira demonstra, melhor do que qualquer outra, essa interrupção de Estado na vida dos personagem. Viúva de João Pedro, Elizabeth interpretava a si mesma na primeira versão de Cabra Marcado. Coutinho a reencontra na clandestinidade, habitando outra cidade e atendendo por outro nome. Ao receber Coutinho e, principalmente, ao se deparar com o material filmado há 20 anos, Elizabeth recupera o seu próprio nome e o do marido. Na despedida entre ela e Coutinho, essa se revela uma recuperação também ideológica, quando Elizabeth se aproxima do diretor para confidenciar a ele sua falta de fé na abertura democrática.
O documentário que resulta desses processos, interrupções e tentativas é não apenas um dos principais títulos brasileiros como também do gênero em todo o cinema. Este é um testemunho possível das dificuldades de se colocar a História em cena, quando é a própria História que agencia o que pode ou não ser encenado, que interrompe narrativas e as atravessa violentamente. Cabra Marcado para Morrer encontra, no rosto de Elizabeth Teixeira, frequentemente, uma posição para o filme: o passado, em ambos, está sempre reconhecido, presentificado, enquanto a postura é dirigida a uma reorganização de forças para o enfrentamento do presente. Mais de vinte anos depois esta é, ainda, uma postura urgente.
Texto integrante do especial Baú dos Clássicos
Partícipe do especial Clássicos Brasileiros
O processo da realização adentro da história e no ritmo da história( ou da interrupção da história).
Massa, Cesar!
Historiadores trabalham com fatos, fontes e os diversos cruzamentos destas últimas - principalmente com as contraditórias - mediante o recorte escolhido e a bibliografia apresentada, porém o silêncio histórico é ensurdecedor. Ele grita. Clama e esculacha. O bom observador da história entende bem o silêncio. Busca escrutina-lo a contento. Por isso os vinte anos de interrupção da obra são sintomáticos. E a retomada do processo é importante neste sentido. Escutar daquelas figuras o que significou esta lacuna. Filme sensacional.
Aquela cena em que os lavradores se veem nos filme antigo é pura poesia.
Eduardo Coutinho é um cara que faz falta :(
Ainda mais por que ele era, na opinião pessoal, o maior cineasta do audiovisual brasileiro na época.
Pior foi o cinema ter perdido não apenas um, mas dois titãs no mesmo dia (ele, e Philip Seymour Hoffman) .