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Críticas

Cineplayers

As imagens de Claire.

8,0
Percebe-se um entendimento geral de que este A Câmera de Claire, gravado por Hong Sang-soo em poucos dias durante viagem ao Festival de Cannes em 2016, seria um filme menor dentro de uma filmografia que sempre se mostrou absolutamente coerente com sua visão de mundo/cinema. As informações sobre a produção em tese confirmariam isso, afinal, trata-se de um trabalho de curtíssima duração (69 minutos), construído mais uma vez nesse ritmo de produtividade invejável de Sang-soo, com quem imagens e narrativas parecem ganhar vida quase inconscientemente, como em um sonho, tamanha a naturalidade com a qual se desenvolvem. Uma participação ainda mais breve de Isabelle Huppert, presente em cena apenas metade do tempo, reforçaria a impressão de ser um filme descontraído, relaxado, como um luau gravado nas areias da Côte d'Azur. Em tela, porém, o que encontramos é outra coisa. 

Superficialmente, pode não haver mais que um círculo restrito de personagens que terão suas histórias iluminadas e transformadas por a girl and a camera, no caso Huppert e sua pequena Polaroid – “fotografar é algo muito importante, porque se eu tiro uma foto sua, você não é mais a mesma pessoa”, ela afirma a outro personagem na mesa do bar, espaço recorrente nos filmes de Sang-soo. Pois é justamente na brevidade desses momentos que parece haver algo de mais complexo, e certamente mais importante, que a mera encenação de novos argumentos e tramas mirabolantes, que autores festejados em grandes festivais de cinema por vezes ostentam como único trunfo. O que vemos em A Câmera de Claire, sobretudo, é a afirmação de um olhar que já se permite dispensar artifícios para preencher a tela de vida e cinema. 
 
A escrita cinematográfica de Sang-soo atingiu muito cedo um nível de depuração que atravessa os principais blocos temáticos de sua filmografia – desde a juventude e a dureza verborrágica dos primeiros filmes; as jornadas transformadoras de seus contos sobre viagens e bebedeiras; e a autoconsciência formal da fase mais metalinguística, com jogos narratológicos que ajudam a construir uma filmografia extremamente rica tanto em suas observações sobre o cotidiano e os relacionamentos quanto sobre a necessidade de narrar para estar no mundo -, e que cada vez mais parece interiorizar-se no processo criativo do diretor. A sensação é de que o coreano monta o primeiro plano de um filme novo como se desse continuidade ao plano final do anterior, estabelecendo imediatamente um diálogo direto com seu público, dando novas perspectivas às mesmas questões fundamentais. 

Especificamente neste filme, a singela função narrativa atribuída à câmera de Claire, e a potência extraída dos pequenos gestos incitados por ela, endossam a maturidade desse processo singular do cineasta, trabalhando cada simples detalhe desses encontros com grande sensibilidade e atenção. Por conta disso, ao contrário de monumentos densos como os recentes Certo Agora, Errado Antes ou Na Praia à Noite Sozinha, nos quais os intensos conflitos entre as personagens conduziam as cenas, temos neste aqui uma espécie de negativo em que pequenos gestos à distância de multidões são suficientes para o drama. Um efeito semelhante ao de um pequeno álbum de fotografias pessoal, com a câmera operando como mediadora e catalizadora de memórias, permitindo-nos rememorar e reinterpretar ações a partir de fragmentos de tempo/espaço, breves e ao mesmo tempo de uma profundidade incrivelmente reveladora. 

“Porque a única forma de mudar as coisas é olhar para tudo novamente de forma bem devagar”, diz a personagem de Huppert à de Kim Min-hee quase ao final do filme, quando, na mesma mesa do mesmo café em que a narrativa se inicia, é questionada sobre qual o motivo para levar a câmera junto consigo todos os dias e fotografar a vida à sua volta. Mais do que sacadas conceituais inseridas na narrativa para dar qualquer solenidade à metalinguagem presente na história, o que as afirmações de Huppert sobre a fotografia evidenciam em A Câmera de Claire é o zelo por imagens que efetivamente servem ao humanismo e à ética da personagem, que fotografa não para si, mas para o mundo - é prática constante dela, inclusive, permitir que os fotografados levem consigo o registro produzido pela câmera. Como no Yi Yi de Edward Yang - "Quero fotografar a nuca das pessoas para que elas possam conhecer seu outro lado" -, Claire é ela própria a representação de um desejo de retribuir ao mundo pelas transformações pessoais que suas imagens - e, consequentemente, o próprio cinema - possibilitam-nos todos os dias, mesmo quando isso importa muito pouco a grandes eventos do mundo do cinema. 

Uns viajam a Cannes e trazem souvenires, fotografias ou prêmios. Sang-soo retornou para casa com um filme lindo na mala. 

Comentários (1)

Declieux Crispim | sexta-feira, 25 de Maio de 2018 - 08:00

Belíssimo texto de um dos grandes diretores do cinema atual.

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