Destacamento Blood e destroçamento da carne preta.
A crítica dum branco azedo do Ceará falando de racismo
Violência. Tripas. Pretos. Isto é Spike Lee caramba. A destruição da carne como mote de cinema absolutamente crítico, raivoso e contundente. Uma visão escrota acerca do racismo na guerra do Vietnã. Com a brutal sagacidade discursiva do diretor aliada às escolhas estéticas grosseiras propostas. Uma maravilha. Aqui o Spike aposta novamente na história como mote de suas concatenações antirracistas. E dentro de um tema altamente conhecido – e doloroso – para o seio choroso norte-americano. Porém a pegada é específica. E os pretos no Vietnã? As muitas versões do conflito põem os negros como partícipes do evento, mas não como protagonistas desta putaria. Cabe ao Spike Lee montar uma epistemologia do esculhambatório que explicite violentamente a situação dos pretos na guerra. E o conflito não acaba quando termina (obviamente), mas ele se perpetua como uma síndrome psicológica e violenta ad infinitum em quem teria presenciado o descalabro. E por serem pretos se lascam dobrado. É uma mensagem do Lee.
Este destacamento de pretos indo resgatar uma grana e reverenciar seu líder, e símbolo de luta, serve para demonstrar o tom de respeito aos pares e que esta união é importante para a sobrevivência da luta. Principalmente quando os bloods foram tão vilipendiados em algum momento. A fita deixa claro que todos eles se arrombam pesado em algum momento da vida e que a volta a este Vietnã não é só um resgate de grana, mas, sim um acerto de contas e uma busca por respostas dos tormentos que teimam em manter-se presentes. O que acaba deixando a questão desta busca tão densa é o tal simbolismo do líder – um dos últimos trabalhos do excelente Chadwick Boseman – que é tratado na obra como uma aura de intocabilidade impressionante que toma de assalto as imagens na figura de Boseman como um mensageiro gigante, que arrasta mentes e corações para uma verdadeira luta. A luta pela liberdade dos seus. Este grande ator que morrera de câncer pouco tempo depois do lançamento do material, acabara por somar mais uma camada funestamente simbólica (infelizmente) à sua presença. Um líder de palavras e ações. Como são os gigantescos citados da fita Malcolm X e Martin Luther King. Boseman é mais um ali dentro que morrera dramaticamente e virara mártir. Porque estas figuras precisam morrer? Não precisam. Mas devem ser estraçalhadas para que seus pares entendam quem realmente detém o poder. O branco. Se olharmos especificamente para a morte de seu personagem, sentimos a surpresa e toda dor dos envolvidos com algo que nos surpreende profundamente, porém em nada impede de culpabilizar os poderosos que inventaram aquela guerra de merda. Os negros no Vietnã ganharam o que? A morte. A oportunidade prometida fora transformada muito rapidamente em moedor de carne. Principalmente quando estamos falando de fim dos anos 60 com a luta pelos direitos civis de pretos e pretas na terra estadunidense. O branco clama. Todos os pobres que se lasquem, mas os pretos pobres que lasquem primeiro e bem mais.
A linguagem usada em prol do discurso. Nada é mais sagaz que este esquema no cinema do Spike Lee. O racismo introjetado nos conflitos e como a carne negra se esfacela dentro destes. Lee mete fotos e vídeos de arquivo de forma crua, sem vernizes estéticos e alisamentos outros, uma escolha pela objetividade da informação e do choque. Lembrando, claro, da escolha para com a razão de aspecto da imagem, vilipendiando-a nalgumas frentes. Entre o conflito vietnamita – num velho super oito abarrotado de ruído propriamente dito – no passado da guerra (numa razão de aspecto 4x3) – razão esta também utilizada para algumas imagens de arquivo documentais, assim como materiais em vídeo de jornais da época; há a opção de amostras de material de arquivo em razões diversas, de acordo com os registros fotográficos originais; o presente na chegada ao Vietnã – com toda luta de cores extravagantes e a guerra na cultura pop – após tantos anos e antes da nova missão (num 7x3); e a junção numa terceira frente (16x9) como uma permanência histórica brutal – com a secura sentida no inferno revisitado pelos personagens num equilíbrio de cores entre passado e presente. Manja na perspicácia do Spike Lee. Ele usa e abusa brutalmente da linguagem como quer para impor sua narrativa. Utilizando da configuração de tamanho das imagens para juntar o novo e o velho num presente inteiro (a tela se completa num 16x9, já que 4x3 e 7x3 deixam sobras em fundo preto nas verticais e horizontais), onde a fusão temporal das questões existem como continuísmos e não rupturas. Nisso a imagem sangra e mostra. A nova missão dos bloods em sua formatação de tela informa isso. Sem escrúpulos. Grosseiramente. Uma beleza imensa. Assim o filme se assume como um retrato cínico e visceral da situação do negro pela sua existência contínua de sofrimentos, onde o conflito bélico mantém o racial como justificativa tácita escamoteada pela política. No caso a “emergência” da Guerra do Vietnã, que massacrara o país e, aqui e na história, usara pretos como buchas de canhão. Aquele moedor de carne maroto que citei antes. Não que isto fosse uma novidade claro. E ele continua. Inteiro. Na tela toda.
Somado a questão da razão de aspecto está a escolha das cores, que, num momento, existe mediante o roxo neon cínico e forte duma boate vietnamita chamada de Apocalypse Now, aqui numa referência ao filme genial do Francis Ford Coppola a lá Spike Lee, onde o apocalypse não acabara com a guerra, mas perpetuara-se na carne preta – o que não impede de mostrar os caras dançando naquele espaço só deles. Entre os seus queridos. O destacamento. Daí às cores chapadas do verde lodo do Vietnã passado em seu caos de rios, helicópteros e balas certeiras conurbando-se no cinismo e nos verdes da nova missão. Lee teima nisso. É a sua escolha sensacional de linguagem. Unir dois esquemas em prol de um terceiro. Este terceiro é a volta do destacamento e este retorno existe por total obrigação. O sofrimento, a dor, o trauma a sensação de inexistência imposta por outrem. Tudo junto de novo na busca por um fechamento. E é claro que o mesmo teria de ser brutal, absurdo e doloroso.
Dentro deste cinismo, temos o personagem mais interessante do ano (com uma atuação estupenda). O Delroy Lindo. Que cara monstro. Tantas vezes relegado a papeis secundários em vários filmes de ação, aqui dá um espetáculo pondo seu talento à um personagem tridimensional totalmente agressivo, genioso e indiscutivelmente apaixonante. Trágico até o talo por sua trajetória e cínico que só ele por ser um trumpista de carteirinha defendendo o ex-presidente Trump sempre que pode. Isto realmente teima em contemplar a cara de pau de Spike Lee homenageando a farsa de um verdadeiro cara lisa, onde é bom rememorar como quando o Trump teria afirmado que desde Abraham Lincoln nenhum presidente fizera mais pelos negros que ele. Lee é cara de pau e este cinismo é extraordinário. Delroy é perdido em sua vida desde o conflito vietnamita. Por razões trágicas por demais. Ele matara por acidente o Chadwick Boseman. Contei mesmo. Um fogo amigo cometido que destruiria a vida de Delroy ao ponto dele não conseguir se relacionar direito nem com amigos ou filhos. E a raiz disso tudo? Um puta conflito estúpido. Delroy briga com todos e perambula nos matos e o ator comete uma atuação absurda sozinho frente a 2 planos-sequências onde ele discute, política, guerra e racismo na marra. Pelo viés de uma mente perturbada que detém um poder de verdade ali absurdamente irrevogável e irrefreável. A guerra é uma merda. E o racismo é postulante da mesma. E sibila.
Agora um breve excerto. Estamos num momento onde quaisquer pedras jogadas para cima sempre vão cair em alguma samambaia sagrada. Ora, acusaram Lee de ser racista para com os vietnamitas. Que os mostrara de forma absorta com tanto preconceito quanto um branco teria com um negro. Sim, sacaram não, foi? O cara meteu o Delroy como trumpista preconceituoso, que trata mal os vietnamitas ainda achando que está em guerra, porque ele foi obrigado a pensar assim porra. A intenção do filme é esta. Mostrar o cara com um perdido no tempo e espaço. Por isso mesmo que respeito a consistência do Spike em ser grosso mesmo. Que metralha e não alisa. A mensagem dele é pela violência feita com os negros e isto não se resolve com cirandas. Fim do excerto.
Existe uma vertente historiográfica conhecida como micro história, que fora levantada pelos historiadores italianos Carlo Ginzburg e Giovanni Levi – na coleção “Microstorie” pelos anos 80. Este material consiste num olhar direcionado às especificidades de personagens em seus recortes e como os mesmos estão introjetados na história através de uma narrativa sobre a condição e narrativa própria e pessoal dos mesmos e carregada por um estudo excessivo de fontes destes. Com a intenção de abarcar o comum dos personagens pelo todo que os cerca e muito usadas em situações comuns para exemplificar a existência de um todo sempre presente. Em Destacamento Blood temos a história destes caras como um microcosmo da história negra no Vietnã, e o que havia de comum nisso era o esfacelamento da carne preta, que era algo usual desde que o comércio ultramarino encontrou sua mão de obra barata. E o diálogo com as fontes exigido é imposto por Lee de forma bruta. Imagem de personalidades e figuras mortas massacradas na tela, chapadas num fundo preto enquanto são citadas pelos bloods. É a história destes caras sobre um malefício imenso que continua a existir. O filme demonstra a trajetória deles com o todo ali atrás fungando. Sempre lá. Não há fuga. Spike Lee não quer saber de alisamentos. A história é demonstrada com sangue e vísceras. São as permanências malditas – aqui juntas em imagem, som e destroço. Na vida comum, o comum não é extraordinário quando deveria ser, porque ele, simplesmente, tornara-se ordinário. O comum da destruição não é novidade. É objetivado pela continuidade de sistemas escrotos. No micro e no macro. Dos Bloods ao Vietnã, do Vietnã ao 2020, do 2020 aos Bloods.
E a tão citada violência? Esta aqui é chocante pela urgência e desespero, como a explosão de uma mina que mutila mortalmente um dos personagens que geme seus últimos suspiros aos gritos pela guerra finalmente ter amputado seus braços e pernas. Esta é uma das aferições que a obra comete com a existência negra. Com o corte de seus direitos de ir e vir. Com a dor da carne. O choque é necessário para que se sinta o que é uma violência crua e usual (sim) contra os caras. Não tem preocupações em ser polido em momento algum, coisa que o Lee já fazia, mas aqui segue os caminhos deliciosos da violência gráfica em demonstração viva de suas intenções. Não temos tempo para conversas e reuniões. Se pretos morrem, a morte deve ser mostrada pelo choque e não pela estética da fome (raça), que os brancos adoram meter.
O resgate do descalabro. Com a imagem servindo como uma moldura da história, que caminha aos passos das escolhas obrigadas a serem tomadas que mostram na carne suas consequências. As permanências históricas citadas são críticas com a micro história dos caras em sua empreitada. E hoje eles ainda são reféns de um racismo institucionalizado ainda existente independentemente de qual garotão que esteja no poder. E são eles mesmos, porque eu não sou preto. Sou um branco azedo do Ceará e vivendo bem na classe média, não sofro porra nenhuma e não invento de cirandar. Eles é que sabem onde o calo aperta, mas calado também não fico, então prefiro me regozijar no cinema do Spike Lee, e dele falar uma caralhada de escrotidões. O pau canta de todo jeito. E Spike Lee mete a sola de volta como resposta agressiva do preto perante ele mesmo. A existência pela porrada.
Sobre tantos outros filmes que tergiversam sobre os mais variados cinemas negros, cheguem junto no especial cinemas negros.
Material escrito e publicado em 15 de dezembro de 2020 para a Revista Cine Café.
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