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Críticas

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Jornalismo e ética.

8,0
A análise histórica de Noam Chomsky sobre a construção sociopolítica da democracia estadunidense, didatizada no fundamental documentário Requiem for the American Dream, revela um aspecto espantoso: sua profunda semelhança com a realidade brasileira, desde a gênese até seus reflexos na política contemporânea dos dois países. O exemplo mais recente desse fenômeno foram suas últimas eleições presidenciais, em que ambas as democracias elegeram os candidatos com o discurso mais antidemocrático de toda sua história. Apesar de tentador, é um erro condenar o eleitor, única e exclusivamente, e ser generalista sobre as motivações do povo para tal escolha. É preciso pensar nos diversos fatores determinantes desse capítulo triste. E uma série de reflexões deve recair sobre o jornalismo nos dias de hoje.

Em artigos recentes, a Revista Piauí (oásis de ética e seriedade jornalística no país) vem criticando a postura cordial da imprensa brasileira na categorização das declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro. Ofensas configuráveis como crime tratadas como “declaração polêmica”. Uma postura isenta que convoca a máxima de Millôr Fernandes de que “imprensa é oposição”. Um jornalismo excessivamente declaratório, muito sensacionalista e pouco crítico, que serve como palanque para políticos tachados por essa mesma imprensa como “controversos”. O que ocorre aqui, ocorreu nos Estados Unidos com a eleição de Donald Trump, trazendo consigo toda sorte de manipulações midiáticas do novo milênio. Das fake news ao firehosing. Assim mesmo, em inglês, termos restritivos demais que ferem outra função de um profissional da área: a da transliteração, adequação da linguagem. Desse modo, o jornalismo se afasta da grande massa e perde terreno para as redes sociais — tão fértil para os populistas, para a manipulação. E para a disseminação de um bordão jocoso que se tornou trágico: o jornalismo acabou. 

Toda essa digressão sobre o papel sociopolítico do “quarto poder” é pulsante em O Favorito. O novo filme de Jason Reitman é ambientado em 1987, quando Gary Hart despontava como o “front runner” (título original do longa) para disputar as eleições presidenciais do ano seguinte pelo Partido Democrata. Intelectual de visão moderada a respeito da União Soviética, o Senador do Colorado surgia como a contrapartida perfeita ao presidente anterior: o conservador Ronald Reagan, imerso em uma crise moral após o escandaloso Caso Irã-Contras em seu segundo mandato. Enquanto seus concorrentes dedicavam a campanha a tirar fotos com possíveis eleitores, o jovem candidato comprovaria seu idealismo com um diálogo sincero sobre política perante as massas. Junto à imprensa, uma relação de respeito abalada apenas quando perguntas de cunho íntimo agrediam sua privacidade. E foi exatamente isto que decretou o fim de sua campanha. Quando a imprensa cedeu à tentação do sensacionalismo e publicizou seu (provável) caso de adultério em uma era de profundo moralismo.

O Favorito abrange as brevíssimas três semanas que levaram Gary Hart da máxima popularidade à decisão de abandonar sua candidatura para preservar a família. Esse tempo curto é formalizado por Jason Reitman com uma direção enérgica desde a primeira cena, com um plano-sequência que passeia pela comitiva do candidato e se alça em uma grua para evocar a grandiosidade e a intensidade de uma campanha presidencial nos Estados Unidos desde as primárias. A trilha sonora, ao som de jazz nessa abertura e referencial aos anos 80 no resto do filme, confere ritmo à montagem e a uma mise-en-scène apinhada de informações. Nesse cenário caótico, cada membro de campanha exerce uma função, e as informações que eles trocam nem sempre são integralmente inteligíveis, cabendo à forma do filme e às atuações servirem como guia do espectador sobre o sentido daqueles diálogos. Essa dinâmica de compreensão do texto e direção pulsante remonta ao recente A Grande Aposta, de Adam McKay, e à própria estreia de Jason Reitman em longas-metragens, com o vibrante Obrigado Por Fumar.
 
Referências à cultura pop da época e outros aspectos técnicos, como direção de arte, penteado e figurino, são fundamentais para ambientar o espectador em uma década e um meio tão particulares. Ainda assim, O Favorito jamais teria sucesso se seu personagem-título não fosse tão bom. Longe das garras do Wolverine na franquia X-Men, Hugh Jackman volta a mostrar seu talento com um trabalho dramático bem modulado, alternando entre declarações sérias, como um bom político, momentos intimistas de generosidade e arrependimento e rompantes de raiva. O roteiro ainda explora o carisma do ator australiano e reserva, inteligentemente, alguns momentos melodramáticos feitos sob encomenda para uma indicação ao Oscar, possibilidade real em 2019. Sempre competentes, Vera Farmiga e J.K. Simmons são relegados a um papel apenas tímido no elenco secundário. Seu principal destaque é o jovem Mamoudou Athie, como um jornalista do The New York Times que exerce a relação mais complexa (e, por vezes, um tanto manipulativa demais) com o protagonista.

Ao fim, porém, é curioso perceber como toda essa concepção cinematográfica de O Favorito, exemplar, cumpre o objetivo primeiro de ser uma cinebiografia eficiente para, então, se revelar um ótimo filme sobre o jornalismo. Muito mais refinado que o premiado (e superestimado) Spotlight: Segredos Revelados, capaz de extrair tensão de um processo investigativo tal como o referencial Todos os Homens do Presidente, o novo filme de Jason Reitman é uma grave reflexão sobre o papel da imprensa. A contribuição maior de The Front Runner é retratar um momento em que o jornalismo, tão corporativista nos dias atuais, questionava a sua própria conduta — e a conclusão é a de que o longa-metragem representa uma virada de página, a grande guinada para um teor mais apelativo, comercial, publicitário. Por fim, resta a esperança de que, como em praticamente todos os aspectos da sociedade, o jornalismo encontre meios de se reinventar após esse momento de crise. E isso passa por uma profunda autocrítica sobre sua real função e responsabilidade. Assim nos Estados Unidos como no Brasil — em todo o mundo.

Filme visto no Festival de Cinema do Rio de Janeiro

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