Bomba, sexo, tesão ou constrangimento?
Christopher Nolan parte pelo caminho óbvio dos realizadores norte-americanos, que é se propor a uma cinebiografia de personagem histórico relevante, neste caso o criador da bomba atômica, no projeto Manhattan, J. Robert Oppenheimer. O diretor opta pelo seu didatismo habitual cerceado pela montagem de multitramas nas quais busca que se alinhem com o objetivo de corroborar a importância do protagonista sobre a proposição da bomba atômica, assim como pelo questionamento interno do próprio tendo lidar com sua criação, e no quão fora investigado quando dera sinais de arrependimento desta nefasta invenção.
O condicionamento de Nolan ao buscar entrar na mente de Oppenheimer é de acertada escolha quando se propõe a persegui-lo durante grande parte da duração dos 180 minutos da fita, assim como aposta na inserção de elementos físicos da invenção da bomba intercalados na mente de seu criador. Isso é bem salutar visto todo o processo de engenharia poética fria do cinema Nolan. Porém a habilidade destas inserções poderia ter sido mais bem explorada na conjuntura da obra. Mas não deixa de ser uma serviçal imagética para mostrar-nos como a figura esquisita de Oppenheimer se comportava. Como o tema é delicado e historicamente acachapante, as escolhas por demonstrar tanto narrativa, simbólica e estruturalmente as nuances de seu personagem principal, talvez seja seu maior acerto nesse filme. Onde ele não se delicia com aportes de uma fotografia deslumbrante, mas se contenta em fechar os planos e buscar absorver a psique de um homem controverso que fora um dos responsáveis por um momento de virada de chave da geopolítica mundial. Por isso a estrutura visa abarcar as reações de Cillian Murphy/Oppenheimer frente ao que cada vez mais gritante se aproximava: a bomba atômica.
Obviamente que dentro disto somos apresentados aos mais variados personagens satélites que rondam Oppenheimer afim de dar-lhes suporte, com alguns deles conseguindo destaque por conta de algum contraste narrativo ou pela qualidade dos intérpretes. Florence Pugh tem uma participação que rendera uma suposta cena polêmica que só se justifica se considerarmos o cinema assexuado do diretor. A transa com Oppenheimer. Algo que na verdade me motivara a sustentar este exemplo como título desse texto. “Tesão ou constrangimento?” O que diabos estas (são duas) cenas podem ratificar tanta gritaria? O diretor não havia dado suporte a tais intentos anteriormente talvez porque não tinha realmente preterido adentrar num personagem sob pressão como aqui assim o fizera, e o fato de ser uma figura histórica pode trazer isso a reboque para tal. A primeira mais parece um coito interrompido do que qualquer outra coisa. Acaba por servir para dimensionar a fração elétrica de semi esquizofrenia que chegou a unir estes dois personagens, onde a interrupção sexual é vista como oportunidade de uma leitura em sânscrito, para assim voltarem ao coito, e ela serve como uma prévia/preparo para a segunda. Constrangimento? Tesão? A segunda é vista pelo prisma do homem desnudo frente a uma comissão política que o acusa, inclusive apontando-o como pervertido sexual por conta de uma traição a sua esposa, o que traz na imagem o alegórico sexual do casal traidor trepando na frente da comissão que o investiga e de sua esposa que imagina a cena como bem entende. Nada de tesão. Pura tentativa de constrangimento. Uma sugestão do diretor em usar a imagem com uma carga simbólica gritante. E que não lhe era empregada anteriormente em seu modus operandi. Talvez por isso ela soe ainda mais esquisita do que o que para proposta ela fora. Mas assim mesmo, e por isso mesmo, ela funcione – apesar de curta, uma falha das sequências mais interessantes do filme. É o sexo esquisito, da figura estranhamente controversa, manifesto. O que diabos uma cena de sexo tem a ver com uma comissão investigativa? É aqui que mora a vontade do Nolan em explorar seu personagem e suas contradições. A evidência do desnudo. Poderia ter insistido mais na questão aliás.
Apesar de algumas diferenças, alguns maneirismos do diretor continuam na pista. Do excesso expositivo nem entro tanto em pauta, já que é um filme que visa descortinar a validação discursiva sobre a geração da bomba atômica, a verborragia era necessária, algo comum dentro do subgênero e não interfere tanto no processo. Um dos mais gritantes deles é o uso sub-reptício da trilha sonora de Ludwig Göransson, que possui o incentivo da direção para manter-nos imersos na trama enquanto se permite ficar teimosamente presente. Este operativo é exagerado e quase causa exaustão. Como a loucura de um Michael Bay nos entorpecendo com movimentos de câmera em simples cenas de diálogos dos personagens (salvas algumas proposições e considerações faraônicas). É a ideia de propor um tom a mais de exacerbação personalista ao Oppenheimer que a imagem já trazia. E tudo isto com um fim em si. Uma aposta na gênese da bomba e da cena da bomba pela imagem. Que tal como o sexo de constrangimento proposital, é ligeira, mas sem constrangimento, e até sem tanto tesão. Só rápida mesmo, algo que é surpreendentemente frustrante quando a proposta se visava (e muito se vendia) para este momento climático, que não persevera tanto quanto poderia, e acaba por se agarrar à poética de engenharia fria Nolan. O diretor toma isso como decisão. A bomba é o fim, mas ele está interessado pelos os meios. Sobre os meios, leia-se J. Robert Oppenheimer. A bomba era um fim em si para que se demonstrasse como prova não somente do poder, mas do pensamento consequencial desta criação. A cena subalterna imageticamente é, e frente aos olhos de Cillian Murphy ao contemplar sua nefasta invenção. Há uma dialética severa e estranha aqui. Ora, existe todo um preparo tanto acadêmico, narrativo quanto político no filme para a resolução da concepção do diabo da bomba, e as escolhas do diretor primam por parte de seus maneirismos em imagem e som que nos deixe quase exaustos diante dos procedimentos seguidos, e quando este clímax cedo chega (mediante a proporção da minutagem do filme), somos confrontados com o silêncio da falta de perspectiva musical para fins do estupro imagético da bomba. Tudo funcional, mas, porém, rápido por demais. Quase um gozo de uma transa constrangedora? A espera enorme foi por uma catarse pela imagem, com a qual nos é dada por um brevíssimo momento. Ele não teve o cinismo atroz de fazermos amar a bomba, mesmo que fosse por admiração contemplá-la. E não era esta a intenção.
Nolan quer seu personagem escancarado não para ser endeusado ou crucificado, mas para demonstrá-lo com uma figura que se quebraria com o tempo simplesmente porque ele é só mais um dentro de um sistema político que o queria por seu talento apenas e assim que fosse possível o relegariam ao esquecimento ou à morte, caso assim tão perigoso o fosse. Para isso servem as sequências onde ele é levantado pelos seus pares pela explosão em Hiroshima – "Little Boy" –, onde uma bandeira norte-americana vista ao fundo valida o feito conquistado; para em seguida mostrar o discurso de Oppenheimer (numa perspectiva que se desafia de forma mais introjetada na primeira pessoa), frente aos mesmos que o levantaram, e nisso ele enxerga o que diabos o fizera. A morte via explosão vista diante da cara derretida das pessoas enquanto clarões se seguem. Algo que adiante se repetiria quando a comissão o investiga e entra neste tema – as duas citadas aqui são as duas melhores sequências da fita. Mas nada de grandes arroubos em exagero, a sobriedade é demonstrada quando o exagero poderia tomar de conta. O arrependimento chega e Oppenheimer busca, a sua maneira, interromper a caixa de pandora que abrira. Não sem o filme tentar ostentar os percalços desta investigação que se salva em muito pela percepção do personagem de Robert Downey Jr – Lewis Strauss – que segura a tensão para compor e contrapor (algo inequívoco historicamente, mas foda-se) com Cillian Murphy. Nisso o clímax já tinha rolado a uma meia hora. O filme desfila elementos sobre a Segunda Guerra Mundial e as justificativas nela inclusas para se criar o projeto Manhattan e a bomba, e passa um leve comentário sobre a falta de propósito dentro do ambiente de guerra para soltar uma arma de destruição em massa sobre uma nação que era a última a se entregar e que estava nos seus estertores de resistência. Um comentário ao longe pra não passar despercebido. Nolan não é Oliver Stone. Não aperta o calo, não gira a faca na ferida. No máximo ele é o responsável por fazer um curativo no ferimento sem negá-lo. Ao longe. Ao contrário dos debates da comissão e perseguição ao Oppenheimer por seu passado vinculado ao comunismo, algo que seria mais usado como mote de punição e descrédito ao cientista por conta de sua campanha contra o programa atômico que ele mesmo teria ajudado a criar. Disso Nolan não se furta.
O desenvolvimento de uma obra desta envergadura necessitar-se-ia de um caráter de duração excessiva, Nolan sabia disso. Assim como creio que ele também sabia que para manter a estrutura narrativa do filme respirando precisaria de um puta elenco que testificasse com suas intenções. Ele é esperto. Assim coloca nomes tarimbados que segurem seu roteiro verborrágico com dignidade e conflito, mesmo sabendo do tamanho do texto. A consciência de um criador mediante os problemas da própria obra que inventara? Esperteza habitual? Cineasta que não aperta personagens escrotos? Demonstração de poderio econômico e simbólico sobre seus serviços? Tudo junto. As escolhas do diretor passam por um posicionamento narrativo que propõe a complexidade de uma figura como Oppenheimer de tal maneira que o criador da bomba atômica é mostrado com um sujeito de psicologia dúbia e problemática, não menos genial por isso, e o perigo do seu projeto nasce não por um direcionamento acusatório de terceiros, mas por um sonho em acabar com a guerra. Como se a bomba fosse a arma do juízo final que ninguém ousaria apertar o botão de ativação da mesma. Elemento este que seria brilhantemente usado como mote por Stanley Kubrick em Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964). A fita propões estes questionamentos internos desse personagem acertando em suas reações e proposições internas de seu pensamento/comportamento conturbado, buscando dar uma tridimensionalidade à figura. A perturbação de um prometeu caído por suas escolhas. Algo salutar sim, mas sem apertar calos como poderia. Não explode absurdamente como promete e nem apunhala tanto quem merece como deveria, mas serve para pôr em perspectiva de debate sobre como tratamos monstros como humanos que são, e como algumas escolhas os tornam como e como isto os arrasta mental e miseravelmente pela história. Chamando-os de filhos da puta ou não.
Parabéns pela crítica, concordo com boa parte das considerações.
Beleza camarada. Valeu.
Achei sua critica eloquente, mas ela não consegue atingir a síntese do que vc mesmo defende. O que me deixa a impressão de uma analise (espero estar engananada) PARCIAL...Perceba que a critica vai de encontro à *quase metafora" proposta por Nolan....Vc num é um cinéfilo de "Tela Quqnte* obviamente....Explicar que uma pelicula, precisa substanciamente de todas particularidades por vc, muito bem mencionadas....Me deixa com pé atrás na Avaliação.....(e cena de sexo talvez não seja pra ser entendida, à mim não faz sentido...enfim, aí é que está o pulo do gato...).
Não existe análise imparcial. Toda e qualquer análise já traz a reboque um juízo de valor previamente estabelecido. Eu só não meto nenhum subterfúgio para tal.
"...Explicar que uma pelicula, precisa substanciamente de todas particularidades por vc..."
Eu não cobrei isso em absoluto. Só analisei o filme por um perspectiva própria (provocação). E nem digo como todo o mesmo deve ser. O que me cabe - ao máximo - é apontar alguns usos e desusos.
A cena de sexo pode ser compreendida e/ou sentida, já que ela é posta como tal. Não é explicada, mas como o cinema do Nolan mais parece a mim um processo de engenharia cinematográfica fria do que outra coisa, parti para o pessuposto do significado, mas se deter ao significado não corta o sentir. Ambos podem se conectar. Isso que me fez achar a cena interessante.