Frente a um potente duelo de perspectivas e interpretações extremas, Dúvida é um trabalho cujo magnetismo de seu texto – e dos que o pronunciam – se sobressai inclusive a própria imagem, ao próprio recurso que o torna cinema. Ser o que podemos chamar duma “peça de teatro filmada” não impede, no entanto, que suas qualidades artísticas sejam, de algum maneira, afetadas; pelo contrário, trata-se dum conjunto que põe à mesa tudo aquilo que propõe, seja a impressionante competência de seu quarteto principal (não a toa foram suas premiações) ou a discussão ética, social e religiosa definida desde o principio – quesito esse que aliás, abre um parêntese ainda maior à crítica que incorpora: os questionamentos do homem.
Os simbolismos ao longo do filme (luzes queimadas, canetas esferográficas, etc.) revelam uma preocupação em se manter fiel principalmente a proposta inicial; John Patrick Shanley quer que duvidemos de seus personagens, assim como eles mesmos duvidam de suas próprias convicções, do que antes lhes parecia certo ou errado, só que agora nem a orientação religiosa é capaz de clarear. O diretor faz questão, inclusive, de desenvolver a ambivalência de seus personagens criando um conflito de noções, quando, por exemplo, o padre amável pode não ser tão bondoso assim, ao passo que a freira intolerante pode estar correta quanto as suas medidas questionáveis; é como se procurasse inverter os estereótipos para fortalecer a mensagem transmitida. Não obstante, a certa altura da trama, as atitudes da mãe do garoto possivelmente assediado parecem tão contraditórias – se ela o ama, por que o deixaria a mercê daquilo? -, assim como a irmã James cuja dúvida se concentra no que os indícios apontam, mas que, por alguma razão, ela se recusa a crer.
O bem e o mal não são pré-estabelecidos na discussão de Shanley – aliás, esse tipo de maniqueísmo talvez nem exista -, já os atos falhos em contraponto com algumas intenções honestas dos personagens conferem a sua dramaticidade uma dimensão mais esférica, mais calcada na humanidade desses indivíduos, e distante do oportunismo de se trabalhar com a univocidade para reforçar qualquer idéia. Os julgamentos aqui vão além das polemicas questões que trata, já que essas são abordadas para dar linha ao conceito que construímos sobre uma pessoa, assim como o que torna ela, aos nossos olhos, alguém verdadeiramente bondoso ou reprovável. É esse jogo de inversões de caráter, essa dubiedade nas ações e nas intenções que torna Dúvida um filme tão complexo e tão estimulante, especialmente do ponto de vista psicológico.
Mas nada disso seria tão funcional caso não houvessem intérpretes tão multifacetados, jamais beirando ao overacting (comum em duelos de perfomance), já que estão certos e entregues aos seus respectivos papéis e à constante troca de emoções, como exemplo do padre construído por Philip Seymour Hoffman que se demonstra tão centrado inicialmente para “explodir” no ato final; ou a irmã que se mostrava calculista o tempo inteiro, mas finda revelando seu tendão de Aquiles, numa das muitas cenas sublimes da idem Meryl Streep. Amy Adams, por sua vez, cria uma personagem que talvez seja a que mais defina a proposta esclarecida pelo título, assim como é também a que, devido aos conflitos mais externados, é a que mais se encontra em nossa posição de espectador. E por ultimo Viola Davis, conseguindo com o limite dentro de 5min. de avassalar todo o filme, num papel que de tão curto impressiona por chegar ao nível de dramaticidade que chegou. Em Dúvida, sintetizando, tudo é bem mais do que parece ser.
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