"Estou pensando em acabar com tudo", filme lançado em 2020 na plataforma Netflix, traz novamente a mente engenhosa de Charlie Kaufman (roteirista de "Brilho eterno de uma mente sem lembranças") às telas, baseado no livro escrito por Iain Reid. E diga-se: o filme é melhor.
Não é um filme fácil. O trailer entrega praticamente uma história soft, que brinca com o duplo sentido do titulo: acabar com o relacionamento ou com a vida?
Inicialmente, vemos o casal principal em uma espécie de road movie, e embora sejam recém-namorados, já é possível sinalizar o início de uma "crise" entre eles. E de fato, quando o casal protagonista está no carro do rapaz, em sua primeira viagem para conhecer os pais dele, tudo parece se tratar de um filme cujo mote será o deslocamento e pessimismo da jovem em relação ao namoro, questionando sua identidade e sua potencialidade em estabelecer afetos, no entanto, o filme é muito mais do que isso.
ATENÇÃO PARA SPOILERS!!
Nas casas dos pais dele, não demora muito a começar a jorrar em tela os primeiros sopros surrealistas: os pais mudam de aparência de uma cena a outra. Antes disso, alguns frames rápidos de um zelador aparecem repentinamente (o zelador retornará nas cenas finais). Durante o jantar, à medida que vamos conhecendo Jake e sua namorada (detalhe, ela não tem um nome certo, é chamada de muitos nomes durante a projeção), percebemos, ao mesmo tempo, uma simbiose e um estranhamento dela com Jake, cena mais evidente quando ela entra no quarto dele ou no porão. Há algo muito estranho ali: fotos, poesias, quadros, que misturam um e outro personagem. O que eles são e fazem vão, progressivamente, se imiscuindo.
A tensão é construída milimetricamente, tornando o filme às vezes arrastado, mas quase tudo é absolutamente necessário. Avançando nas cenas, lembranças de um celeiro na infância, um mal estar com os pais, a volta para casa, a parada numa sorveteria mesmo durante a nevasca, cujas garçonetes chegam a dar avisos macabros, tudo isso vai sendo construído com um clima de suspense. Seria o sinal de que algo muito pior ou muito sinistro estará prestes a acontecer? Na estrada, o casal para o carro com o objetivo de jogar fora os copos do sorvete não tomados, iniciando um terror claustrofóbico muito bem arquitetado.
Muito mais horripilante do que se o filme descambasse para um feminicídio, já que o roteiro entrega todos os indícios, com um protagonista perturbado, uma conversa de estupro, uma parada numa escola que parece estar abandonada (lembram do zelador?), a imagem da cesta de lixo, cheia de inúmeros copos de sorvete... Mas na verdade, o longa é muito mais horripilante do que isso.
Em determinada passagem do filme, a jovem afirma que o pensamento é mais real que a ação. Diversas cenas desconexas mas que entregam uma experiências sensorial, e que parecem arraigadas a fortes memórias, criam um tipo de horror baseado nas lembranças da vida e daquilo que foi ou que poderia ter sido. A "não-vida" pode tornar-se um pensamento poderoso, muito mais do que a ação vivida. Em síntese, o filme é sobre relacionamentos vividos ou não vividos, em especial os platônicos, sobre nossas frustações, sobre o peso de envelhecer, sobre lembranças, sobre a relação com namoradas ou com a família, e abre espaço até mesmo para sugerir relacionamentos abusivos, mostrando as marcas que ficam não apenas nas vítimas, pois tudo isso é na mente de Jake, não da garota.
Portanto, o filme dialoga com a masculinidade do homem moderno: mesmo Jake tendo o potencial de ser um homem de sucesso, com uma infância marcada por pequenos prêmios (que não indicam absolutamente nada à vida adulta), teria ele virado um zelador apático? Teria ele vivido relacionamentos infrutíferos e se decepcionado com várias namoradas? Aliás, ele teve relacionamentos? Ou pior, ele chegou a ser um homem abusador? e sua relação com os pais?
Note que é um filme que trabalha com simbolismos, portanto, não há respostas. Inclusive, está aberto a inúmeras interpretações. Mas é muito mais assustador do que simplesmente descambar para, por exemplo, ser um filme de serial killer. Ele subverte nossas expectativas para falar sobre a vida e seus rumos incertos, sobre o navegar pelas desilusões ou pequenos prazeres, como a poesia ou a pintura, ou tomar um sorvete, e ainda assim não sentir-se pleno. É um filme sobre incerteza. A única certeza mesmo, é que estamos diante de mais um filmaço de Kaufman.
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