Saltar para o conteúdo

Uma Estranha História de Amor

(Uma Estranha História de Amor, 1979)
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Amor Paranormal

9,0

Em um grande quarto, várias criancinhas entre seis e sete anos dormem profundamente. Na trilha sonora, uma música infantil embala o sono da garotada. De repente, uma menina desperta, vai até a cozinha, pega uma garrafa de álcool e se dirige até o quintal para atear fogo em uma casa de bonecas. Depois, ela fica ali, admirando o incêndio. Esse é o cartão de visitas do diretor John Doo, para indicar ao espectador o que virá pela frente. Não que fosse preciso de muito, afinal, para quem conhecia Ninfas Diabólicas (1978), seu primeiro longa metragem, sabia que não poderia esperar nada de diferente em seu trabalho seguinte.

Assim como em seu primeiro filme, este Uma Estranha História de Amor (1979) também carrega contornos fantásticos. Já não são mais duas jovens sedutoras que possuem poderes paranormais, mas uma pequena menina chamada Raquel. Ela tem dons intrapsíquicos e prevê o futuro ao conversar com sua boneca de pano, Alice. Ao adentrar o terreno infantil, Doo carrega numa trilha sonora pueril, que ganha contornos cada vez mais macabros, conforme a narrativa se desenrola.

Raquel, é uma das educandas de um internato infantil no interior de São Paulo. Ali ela conhece Maria, a nova professora do colégio, que chegou na cidade e começa a identificar os tipos sociais que ali vivem. A obra, que se passa no interior do estado paulista, cria a sensação de um mergulho no Brasil profundo e em suas estranhezas, muitas vezes, levadas às metrópoles como contos folclóricos.

Na realidade, essa não é uma característica apenas do Brasil, mas da América Latina, de forma geral. Basta lembrar da cineasta argentina Lucrecia Martel que comenta que o seu cinema de tons insólitos é muito marcado por sua infância e pelas histórias macabras contadas por sua avó na pequena cidade onde moravam. Ou mesmo, Nazareno Cruz e o lobo (1975), dirigido por um dos mais importantes cineastas argentinos, Leonardo Favio, que conta a história de um sujeito que se transforma em um lobisomem, devido a acontecimentos extraordinários na pequena região em que vive. O mais curioso é que pensando em As Boas Maneiras (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2017), por mais que o filme seja marcadamente na metrópole paulistana, a história de lobisomem se inicia no interior do estado de Goiás.

Essa parece ser a visão da urbana Maria para a pequena cidade onde ela está chegando. Mesmo porque, ainda no ônibus de viagem, elementos estranhos já começam a rondá-la. O interior aqui, é sinônimo de enigmático e obscuro. Não de acolhedor e receptivo como, por vezes, as cidades interioranas são retratadas.

O primeiro homem que Maria conhece na cidade aflora essa sensação amedrontadora. Diogo é o típico playboy que pensa ter o mundo em suas mãos pois sua família é muito rica. Ele tem um caso com uma mulher mais velha, Mônica, a qual não faz a menor questão de tratar bem e, mesmo sendo estúpido com Maria, ela admite que sente tesão por ele. Posteriormente, Maria conhece Daniel. O sujeito é o oposto de Diogo, calmo e sereno. Também é professor do colégio em que Maria irá dar aulas, contudo é um sujeito misterioso que parece sempre estar tramando algo.

A partir desse quadro de crianças paranormais, professora recém-chegada e homens de segundas intenções, cria-se o terreno para os temas em que John Doo mais se sentia à vontade para trabalhar: terror, sexo e morbidez. Desde seus primeiros filmes até as últimas obras de sua carreira como Excitação Diabólica (1982) e Volúpia de Mulher (1984), essas são características marcantes do realizador chinês radicado no Brasil.

Em certo momento, Diogo leva Mônica para um terreno deserto sem o consentimento dela apenas para ridicularizá-la. Esta cena é costurada por outros dois fluxos narrativos que dão o tom dos protagonistas. Enquanto Diogo agride Mônica, Maria descobre que Daniel tem segredos que não pode revelar para ela e Raquel é vítima de intimidação por parte de um colega do colégio que rasga o vestido da boneca Alice porque a menina não quis beijar o sapo que ele carregava. A partir de uma transição de músicas na trilha sonora para cada tempo narrativo, o filme constrói uma inteligente montagem alternada que identifica diferentes agressões às figuras femininas.

Afinal, a ligação mística que Maria e Raquel vão demonstrando ter ao longo do filme - inclusive com a criança salvando a professora ao ouvir de sua boneca onde ela estaria - têm uma  relação com a forma como as duas sofreram e foram maltratadas, inclusive, pela condição de gênero. No único momento em estão mais distantes, Maria é grosseira com a aluna. Entretanto, na maior parte das vezes, a professora parece ser a única pessoa a entender Raquel, mesmo que tenha a conhecido dias antes. É Maria, por exemplo, que faz a menina entender que a boneca não morreu quando teve o seu vestido rasgado, apenas estava dormindo - quando Raquel já preparava o velório da boneca com direito a um caixão específico para Alice.

A ligação entre as duas não é umbilical. Em nenhum momento Maria existe como uma figura materna para Raquel: a relação de educadora fica evidente. Todavia, como as duas são constrangidas ao ficarem presas dentro de casa por um castigo masculino e, para conseguirem escapar, uma conta apenas com a outra, a relação entre elas fica cada vez mais intensa.

É comum pensar em José Mojica Marins - criador do popular personagem Zé do Caixão - como uma figura singular no cinema brasileiro, por lidar com estruturas do cinema de gênero do terror. Dessa forma, é mais fácil ver uma comparação entre Mojica e outros cineastas de terror estrangeiros como do que com cineastas brasileiros propriamente.

A aproximação de Mojica e Doo, contudo, é bastante evidente (e podemos pensar ainda em outros cineastas como Jean Garret e Raffaele Rossi). Os dois faziam uso de estruturas do cinema de horror para promover uma compreensão social do país. Além disso, várias de suas obras contêm o sexo com central nas tramas, influência de um cinema tipicamente da boca do lixo - em que os produtores valorizavam tais sequências. Analisar o cinema de Doo e pensá-lo comparativamente junto a outros cineastas do Brasil é um passo fundamental para a reconfiguração do pensamento do cinema nacional para além de um grupo seleto de realizadores, expandindo assim, o imaginário de nossa produção cinematográfica.

Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween

Comentários (1)

Ted Rafael Araujo Nogueira | domingo, 25 de Outubro de 2020 - 15:21

O especial está bombando. Só pedradas.

Lucas Reis | terça-feira, 27 de Outubro de 2020 - 19:22

Tá massa demais, Ted! Material super importante para o cinema brasileiro, inclusive!

Ted Rafael Araujo Nogueira | quarta-feira, 28 de Outubro de 2020 - 03:04

Com toda certeza. O resgate deste tipo de material é imprescindível. A história do nosso cinema sangra suor, sangue e putaria nestas fitas.

Faça login para comentar.