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A comparação pode parecer tola, mas Ela é o King Kong do século 21. Uma vez que ambos os filmes se preocupam em estabelecer uma improvável relação amorosa entre duas figuras que, teoricamente, não poderiam ter nenhuma espécie de relacionamento romântico, não se torna muito difícil criar uma conexão temática entre os dois filmes (mesmo com quase cem anos de distância entre eles). A grande diferença (além da óbvia substituição da natureza e da personalidade de seus protagonistas) está na arquitetura temática: Enquanto o clássico de 1933 - e a excelente refilmagem de 2005 – adotava um clima de aventura constante, este novo filme de Spike Jonze opta por desenvolver um tom mais íntimo e pessoal – saído diretamente das inúmeras produções independentes – além de abordar de maneira sutil questões relevantes dentro da época em que vivemos.
Contando uma história aparentemente simples (um homem socialmente distante encontra reconforto em uma mulher) Jonze consegue alcançar a originalidade de seus longas anteriores, e situa o expectador em um filme que diferente de Adaptação e Quero ser John Malkovich (que contavam com elementos claramente surreais) é completamente ancorado no naturalismo, mesmo se passando em futuro com grandes avanços técnicos. Desta forma, todos os componentes tecnológicos de Ela possivelmente serão vistos no mundo em pouco tempo, e mesmo se não chegarmos a conhecer uma inteligência artificial tão complexa quanto a apresentada no filme, vamos com certeza nos deparar com algo extremamente similar. E ao desistir de criar um universo fantástico distante da realidade, Jonze aproxima mais a plateia das figuras vistas em tela e das situações em que eles se encontram, fazendo com que vários espectadores possam facilmente se identificar com os conflitos da narrativa (afinal, quem nunca sofreu com uma desilusão amorosa ou o fim de um relacionamento?).
Dito isso, o grande e único problema de Ela é seu ritmo arrastado que é responsável por transformar, aos olhos do público, as duas horas de duração em três, já que o diretor insiste em acrescentar longas sequências que, artificialmente, são pouco relevantes para a história. O problema é rapidamente absolvido quando notamos que tais sequências são essenciais para o vasto desenvolvimento dos intrigantes personagens; isso pode ser facilmente percebido quando acompanhamos um piquenique ao ar livre, que soa descartável incialmente, mas que desempenha o importante papel de fazer com que o espectador encare Samantha como uma pessoa real, além das longas caminhadas Theodore que evocam a solidão intensa do protagonista. E mais: ao estender a narrativa, Jonze consegue aproveitar todas as possibilidades que a história oferece, criando momentos que oferecem novas camadas dramáticas aos personagens e que surpreendem pela criatividade (mesmo não levando a história para lugar nenhum). O maior exemplo se dá no momento em que Samantha tenta usar uma mulher aleatória para se materializar fisicamente para o amado, resultando em uma das sequencias que mais exploram a dualidade psicológica dos personagens.
Porém, Ela apenas funciona por causa do brilhante desempenho de seu elenco: Por mais comum que seja seu personagem, o que não significa que não seja complexo, Joaquin Phoenix não se deixa limitar e faz com que o personagem caminhe em uma linha tênue entre a depressão e a extrema felicidade (não parece ter meio termo para Theodore), o que se torna orgânico e natural já que o script insiste em exaltar constantemente a sensibilidade e fragilidade do protagonista. Enquanto isso, Samantha ganha contornos mais complexos através do brilhante trabalho de voz de Scarlett Johansson (assistir Ela sem o áudio original é imperdoável) que torna a personagem mais encantadora conforme se surpreende com seus próprios sentimentos e, principalmente, sua capacidade de sentir. E ao desenvolver ambos os personagens com uma força brutal, Ela não demora muito para montar uma relação tocante e extremamente palpável (apesar das circunstâncias), já que além de estabelecer um afeto único entre o casal, o filme também estabelece uma relação de dependência mútua: Samantha necessita de Theodore visto que ele representa a possibilidade de se relacionar com o mundo dos humanos, já Theodore precisa de Samantha para esquecer a mágoa deixada pela separação. Porém, também não é raro se deparar com situações que colocam os dois em colisão: a sequência citada no parágrafo anterior tão bem ilustra isso muito bem, iniciando um conflito de interesses interessantíssimo (mesmo Samantha expor sua necessidade espiritual, Theodore recusa a se entregar a uma completa estranha) que deixa o relacionamento muito mais inquietante.
De uma forma ou de outra, um dos aspectos mais interessantes de Ela é sua contextualização no mundo atual: Além de subverter vários lugares comuns de comédias românticas (existe um conflito entre o casal no terceiro ato, mas este se mostra forte, orgânico e eficiente), Spike Jonze aposta num ótimo comentário a absurda relação que os humanos têm construído com as máquinas ao seu redor ao mesmo tempo em que perdem a capacidade de se relacionarem com outras pessoas. E mesmo quando conversando com outros seres-humanos, os usuários do Facebook (por exemplo) se relacionam de maneira uniforme e automática, o que faz com que a interação natural se perca no meio do caminho. E exatamente isso que faz com que Ela passe de um simples romance inusitado a um estudo social complexo e inteligente: O fato do protagonista se apaixonar por uma inteligência criada artificialmente e não por uma pessoa, transforma a obra em a grande mensagem irônica e sutil de que as máquinas vão se tornar mais humanos que os próprios seres-humanos, se a sociedade continuar seguindo o caminho atual.
Contando ainda com diálogos puros e singelos, a longa conversa que se passa antes da primeira relação sexual entre o casal (hein?) é simplesmente magnífica, Ela surpreende por ser um filme mais completo e complexo do que parece. À partir de agora, é só esperar um sistema operacional com a voz de Scarlett Johansson entrar no mercado.
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