Não há, definitivamente, imagem mais aterradora que ver aquele que deveria nos conferir proteção tornar-se gradualmente o objeto de nossos temores pessoais e pesadelos mais profundos. É como constatar que não conhecemos realmente quem está ao nosso lado, e mais afundo nessa questão, nós mesmos, visto que a proposta de Stanley Kubrick em O Iluminado (The Shining, 1980) é tocar, como já é praxe em sua carreira, no aspecto mais obscuro do ser humano. Sua narrativa investe em duas perspectivas distintas, partilhando de um mesmo cenário, de um mesmo mundo que os olhos são capazes de capturar – com a adição do medo e da demência nesse meio. É o Overlook Hotel através das óticas de Danny e Jack, perdidos e inertes diante da beleza opressora de um lugar que tanto habita mistérios quanto é sondado por uma macabra nuvem de tragédia que o envolve.
O cineasta faz aqui o que voltaria a realizar, com estudos e propostas diferentes, em seu thriller De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), onde o ambiente comum em que vivem os personagens – lá uma sombria cidade de Nova York –, bem como o conhecimento que têm sobre si próprios e os que estão ao seu redor passa a mudar, a medida que sentem-se ameaçados pela emersão de seus temores particulares. Em O Iluminado também é utilizado o painel familiar, com o pai aparentemente superado de seus vícios, a mãe em pleno estado de complacência e o filho tentando se ajustar as atuais promessas de vida nova. Contudo, a simples ausência de presenças físicas no lugar torna-se um dos catalisadores para o processo de loucura que passa a atormentar as ambições de estabilidade. E nesse panorama devastador, as visões sobrenaturais e os o universo fantasmagórico que passa a harmonizar com o mundo daquelas pessoas revela a fragilidade emocional do homem ao defrontar-se com seus sentimentos mais destrutivos.
Jack é o dispositivo desse horror. Sua mente, seus impulsos, seu espírito são tragados por um assustador abismo de insanidade, e Kubrick vão desalinhando a personalidade problemática do pai de família através dos instrumentos mais básicos para confeccionar o horror em cena. Não precisa se valer de muito mais que uma sequência de alucinações imagéticas e a iminência de morte suspensa no ar para imergimos naquele prédio que parece ter saído das mais apavorantes histórias de terror. Sempre com a elegância dos detalhes e as minúcias de sua estrutura secular, o Overlook não esconde aquele perigo que se anuncia por entre seus corredores e até mesmo em sua imponente fachada. A partir do momento que a família Torrance atravessa sua entrada é como se caminhassem rumo ao cadafalso, e cada dia que permanecem naquele lugar equivale a um degrau que trilham para a forca. O mais horripilante é a certeza de que, desde o início, por mais que clamem ou gritem por socorro, ele tão cedo não virá, tendo em vista o absoluto isolamento social daquele hotel, intensificado, claro, pela impiedosa tempestade de neve que o revestiu.
Dessa maneira, o Overlook funciona, portanto, como um inferno delimitado para aquelas três pessoas, em especial Jack que cria com ele uma dependência recíproca, como se um se alimentasse da tragédia do outro e assim encarregasse sua energia às paredes daquele lugar, e esse, por sua vez, depositasse sua resistência na mente ensandecida do zelador. Como vítimas passivas dessa relação aniquiladora estão Wendy e Danny, desorientados em função do duplo perigo que enfrentam, personificados através de um prédio guardião de segredos atormentadores e um homem desequilibrado que passa a manusear um machado a procura de suas cabeças. Esse homem nada mais é que o centro daquela família, possuído por fantasmas alheios e uma definição surpreendente de sua própria natureza humana. E, dados os eventos, cabe ao diretor montar sua perseguição fatal, estando mais para um esconde-esconde da morte. É um ciclo de terror que se sempre se abrirá e fechará nas paredes do Overlook Hotel, e mesmo com o aparente desfecho de tudo, a cena final nos permite a absoluta certeza de que nada ali realmente acabou – ou sequer um dia irá acabar.
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