“Os solitários tentam compreender a solidão”
O casal protagonista se beijar no último plano do filme. Existe um final mais simbólico do amor e romantismo no cinema? Mas em Cinzas que Queimam quando os personagens de Robert Ryan e Ida Lupino se beijam não existe amor ou romantismo. Por mais que exista um otimismo latente ali, o que transborda parece tristeza e compreensão da insignificância do ser humano como figura individual. É mais ou menos como diz o protagonista de outro filme – a obra-prima No Silêncio da Noite - de Nicholas Ray, Dixon Steele (Humphrey Bogart), em uma pérola de poesia amarga: nascemos quando iniciamos uma relação, morremos quando a findamos e vivemos no período que compreende um extremo e outro. Apenas durante esse tempo.
Solitários somos cascas vazias. E Cinzas que Queimam já ilustra a diferença de uma casca vazia e um ser vivido logo em seus primeiros minutos, quando uma viatura passa na casa de três oficiais da policia e encontra dois deles esbanjando sorrisos ao lado de esposa e filhos, enquanto o último, Jim Wilson (o personagem de Ryan), em uma imagem que se torna amarga assim que o contraste é estabelecido, transita sozinho e de semblante fechado por um cômodo que parece morto sem a existência de outras pessoas. Nas ruas, Jim é um policial tão bom quanto esquentado. Prende suspeitos, mas não sem antes estourar e arrancar informações deles à socos, o que leva seu superior a enviá-lo para uma cidade interiorana para resolver o assassinato de uma garota. É lá que conhecerá a personagem de Lupino, Mary Malden, uma mulher cega que divide com Jim o estado de solidão.
Cinzas que Queimam é um representante do noir e como tal, se passa em um cidade que parece assolada por todo tipo de escória em seus becos mal iluminados. E Jim lida com eles em seu dia a dia na polícia. Assassinos. Estupradores. Ladrões. Face a face com aquilo que de pior pode apresentar um ser humano. Face a face com aquilo que de pior ele próprio pode apresentar – “por que você me obriga a fazer isso?”, diz exaltados antes de desferir murros no rosto de um suspeito. Como um colega de farda alerta, im ao fim do dia precisa se desvencilhar de alguma maneira de tudo aquilo com o que convive ao longo dele, mas como esquecer do pior que o cerca e do pior que o consome quando se está sozinho? Por que, como alerta Mary, Jim está sozinho, mesmo vivendo em uma grande cidade.
E a propósito de Mary, é interessante como o roteiro de Nicholas Ray e A.I. Bezzerides e a própria direção de Ray (tarefa na qual foi auxiliado por Ida Lupino, não creditada), que revela um cuidado minucioso com sua mise en scène, vão aos poucos mostrando a verdadeira função da personagem na narrativa: se de inicio ela parece uma típica femme fatale que sabe mais do que afirma, logo se revela uma mulher que apesar da deficiência visual – que nunca é explorada pelo filme como um mero recurso dramático -, revela-se uma mulher forte e preocupada com o irmão, sua única companhia – “seus olhos” -, de quem é seu dever cuidar como ele cuida dela. Assim, quando o filme resolve aproximar os personagens de Lupino e Ryan, a relação, como mencionado anteriormente, possui muito mais identificação mútua do que paixão. E é interessante como apesar do sentimento não ser aquele dos contos de fadas, eles parecem se conhecer muito mais do que gostariam de admitir, como prova a conversa sobre o relacionamento entre solidão e solitários, de onde a pérola de diálogo que abre esse texto sai.
Funcionando como um irmão temático de seu antecessor No Silêncio da Noite, Cinzas que Queimam encerra com seu protagonista nascendo a partir de um beijo, enquanto o personagem de Bogart morre ao ser deixado no fim da outra produção, em uma espécie de rima amarga entre as obras de Ray. Mas por mais que o futuro possa trazer a morte em vida também para Jim – e levando-se em conta que sua personalidade parece refletir a de Dixon, não duvidaria disso -, o que importa é ambos viveram durante algum tempo até lá. E qualquer dor solitária se torna suportável quando nas memórias habitam algumas semanas de vida plena...
Fodaraço esse texto!!!
Opa, valeu, Chico ♥