- "Bem, falta de esperança e raiva o suficiente fazem o amor se transformar..."
- "Se transformar em que?"
- "Numa merda dolorosa."
O Doce Amanhã é um filme sobre perda. Dito isso, você já está avisado que ele dói. Bastante. Gosto de pensar que ninguém está preparado para assistir algo pesado como o que Atom Egoyan fez aqui, porque isso significaria já ter experimentado os sentimentos inspirados pelos personagens da narrativa e nenhum deles é bom, porque mesmo quando são, é apenas para o contraste ser estabelecido e tudo doer mais ainda. Peguemos, por exemplo, a cena em que o advogado interpretado por Ian Holm narra o dia que sua filha, ainda bebê, quase morreu asfixiada após ser picada por aranhas: é tanta ternura, carinho e beleza transmitida pela imagem de um pai com a filha no colo, disposto a tudo por aquele pequeno ser que tanto dele e para ele representa, que é difícil não se emocionar. Mas antes da narração terminar, você lembra que agora aquela história é uma memória que se perdeu ainda em vida, porque a garota está viva, mas afundada em drogas em um ponto que o personagem já desistiu de ajudá-la, apenas espera suas ligações e a ouve em seu ódio, porque é isso que um pai faria. Aí o diálogo de alguns minutos antes, sobre o amor virar uma "merda dolorosa" passa a fazer todo sentido.
Mas Mitchell Stevens, o advogado, não é o único a lidar com suas perdas. O passado e o presente do personagem de Holm é uma das linhas narrativas de O Doce Amanhã, a outra lida com os traumas de toda uma cidadezinha que após um acidente de ônibus escolar perdeu quase todas as suas crianças, assim vemos o enlutado presente onde entre correntes do passado e tentativas sem muito sucesso de seguir em frente, os caminhos de pais, mães e crianças sobreviventes se cruzam com o de Stevens, que chega ao local querendo mover um processo contra os responsáveis pela tragédia, porque para ele "acidentes não existem", não podem existir, a perda precisa de um motivo, uma origem. Aí se tudo parece egoismo em um primeiro momento, mexer em feridas não cicatrizadas para lucrar, logo se revela uma busca por algo que nem ele parece saber o que é. Talvez dar um destino para a dor e ódio daqueles familiares, já que ele próprio não sabe para onde direcionar seus próprios sentimentos? É possível.
Daí que o título da produção se revela uma imensa ironia, porque passado e presente são pesos tão difíceis de erguer aqui que não parece haver nada a seguir, tudo é repetição de um momento que parece preso num tempo próprio - assim as frequentes repetições de fragmentos dos momentos que antecedem o acidente se tornam significativas aqui. O acidente, aliás, é, como não poderia deixar de ser, uma cena forte, que fica martelando na cabeça após o filme, o pavor no rosto de um pai que seguia o ônibus acenando para os filhos, os gritos das crianças - e um raccord sonoro que une esses gritos com outro em dado momento é daqueles coisas que você se sente mal por apreciar a beleza técnica existente em sentimentos tão difíceis de lidar -, o veículo afundando aos poucos no gelo, é de prender o fôlego e esperar acabar de uma maneira "menos ruim", mesmo sabendo de antemão que não irá.
Nessa mesma linha, o momento quem que a produção liga a história da garota que sobreviveu ao acidente e ficou paraplégica, Nicole, interpretada pela ótima Sarah Polley, com a história do flautista de Hamelin, é daquelas coisas que permanecem com a gente para além dos créditos finais, seja pelos sentimentos fortes despertados, seja pela beleza com que Egoyan funde a narração da história com as imagens de sua personagem criando todo um novo significado para as palavras do livro. E que cenas inteiras de O Doce Amanhã permaneçam com nós é o atestado do sucesso do longa, que nos larga sem um final fechado para seus personagens, nos deixando na mesma situação daquelas pessoas que reviverão cenas de suas vidas vezes e mais vezes na cabeça ainda, em hojes amargos que jamais parecem trazer o tal do doce amanhã que os libertará.
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