Fazendo e aprendendo sobre filmes.
Um dos mais velhos diretores americanos em atividade no começo do século XXI, Sidney Lumet era um remanescente do período áureo da Hollywood clássica. Um raro cineasta a ter dirigido estrelas que estavam em seus auges no final da década de cinqüenta (Henry Fonda, Marlon Brando, Sophia Loren) e atravessado meio século vivenciando as transformações e os novos rumos que a arte da qual foi um dos mestres passou nesses anos todos. Pelo menos quatro ou cinco gerações acompanharam de perto o andamento de sua filmografia, e o que se constata é que Sidney Lumet sempre esteve conosco, não importa quantos anos cada de um de nós possuímos. Numa carreira prolífica de dezenas de títulos não é difícil encontrar títulos abaixo da média ou francamente desinteressantes, mas convenhamos: há algo de especial num diretor que estréia no cinema com o clássico 12 Homens e uma Sentença (12 Angry Men, 1957) e se despede exatos cinquenta anos depois com o surpreendente Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto (Before the Devil Knows You're Dead, 2007).
A carreira de Lumet encerra virtualmente cerca de metade da história do cinema americano, desde o seu apogeu, passando pelo declínio, queda e ressurgimento de Hollywood como uma grande indústria. Nascido apenas quatro anos antes do cinema falado, pertencia a uma época essencialmente diferente da de quase todos os outros diretores em atividade. De acordo com Peter Bogdanovich, Lumet utilizava um método de trabalho empregado por grande parte dos principais diretores do cinema mudo (bem como por muitos do cinema sonoro), mas praticamente inexistente hoje em dia: o de saber antes de filmar como cada cena ou sequência será montada, filmando, portanto, apenas o necessário para conseguir isso, deixando poucas opções para a sala de montagem, e assim, acelerando os processos de filmagem e pós-produção. O próprio Lumet (que em 1995 publicou um ótimo livro sobre as diversas fases da produção cinematográfica e o ofício de diretor: Fazendo Filmes) descreveria que o trabalho no cinema hoje é como fazer um mosaico: “Toma-se cada pedaço, pinta-se, lustra-se e se faz o melhor possível em cada pequeno pedaço individual, e só quando todos os pedaços forem colados é que se saberá se resultou em algo”. O cineasta completa que todo bom trabalho é um acidente, cabendo ao diretor apenas preparar o solo para que o acidente aconteça (embora muitos outros trabalhem de tal modo que arruínam qualquer chance dele ocorrer).
Há algo de excessivamente controlado, de muito seguro no estilo de Lumet, que jamais arriscou arroubos de genialidade em sua obra, mas tampouco se manteve num feijão com arroz no trabalho de direção. Lumet é cria do cinema, teatro e televisão, tendo aprimorado nessas três áreas o seu conhecimento sobre artes cênicas, dramaturgia, atores, etc. Nascido em 25 de junho de 1924, em Filadélfia, na Pensilvânia, começou como ator no teatro ídiche ainda na infância, aos quatro anos, e a partir de 1929, em diversos seriados de rádio. Chegou ao teatro da Broadway em 1935, onde permaneceu numa sequência de trabalhos por mais de uma década (nesse meio tempo, integrou o elenco de um único filme: One Third of a Nation [idem, 1939]). Cedo ainda abandonaria a carreira de ator para dirigir na Broadway com regularidade durante quase quinze anos. A TV norte-americana o recrutou no começo dos anos 50, realizando por uma década inteira diversos teleteatros, no que foi o primeiro (e melhor) florescimento daquele veículo. Lumet foi um dos nomes mais importantes e das primeiras revelações dessa nova geração de diretores surgidos na época áurea da TV “ao vivo”, que incluía ainda, entre outros, John Frankenheimer (que começou como assistente do próprio Lumet), Arthur Penn e Delbert Mann ─ este, o primeiro a dar o salto para a tela grande do cinema, com o superpremiado Marty (idem, 1955), sem conseguir, no entanto, segurar a carreira em Hollywood, decaindo dali em diante filme a filme. A estréia de Lumet no cinema também foi um trunfo (ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlin), e resistiu ainda melhor à passagem do tempo: 12 Homens e uma Sentença se aproveita muito de sua experiência na TV e no teatro, mas supera o perigo de uma possível estética televisiva ou de puro teatro filmado explorando pela decupagem uma grande diversidade de ângulos e variações de planos fechados, detalhes nas expressões do elenco e uma notável mobilidade de câmera e cuidado nos enquadramentos, fazendo fluir com desenvoltura uma narrativa dentro de um único espaço claustrofóbico e enclausurado do pequeno microcosmo de uma sala de jurados. Uma aula de mise en scène e de captura da emoção humana utilizando recursos essencialmente cinematográficos.
Lumet permaneceu ainda mais alguns anos dividido entre a TV, a Broadway e o cinema, optando somente pelo último a partir de 1962. Alguns de seus primeiros filmes tiveram problemas de produção, com montagens não aprovadas pelo diretor: Quando o Espetáculo Termina (Stage Struck, 1958) perdeu o interesse do cineasta antes mesmo do trabalho de edição, e Mulher Daquela Espécie (That Kind of Woman, 1959) resultou em uma série de desentendimentos com os produtores. Seguiram-se algumas adaptações, com resultados desiguais, de peças famosas de autores consagrados como Tennessee Williams (Vidas em Fuga [That Fugitive Kind, 1960]), Arthur Miller (Panorama Visto da Ponte [View From the Bridge, 1961]) e Eugene O’Neill (Longa Jornada Noite Adentro [Long Day's Journey into Night, 1962]). Um dos seus melhores trabalhos, Limite de Segurança (Fail-Safe, 1964), teve problemas quando Stanley Kubrick ameaçou processar o estúdio por causa do filme, que tinha um argumento bastante semelhante ao de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964), que estava sendo rodado na mesma época, ficando combinado então que o de Lumet só estrearia seis meses depois de Dr. Strangelove. O episódio acabou atrapalhando a repercussão de Limite de Segurança, que ficou obscurecido pelo de Kubrick, sendo, entretanto, redescoberto ao longo do tempo como uma visão aterradora da Guerra Fria, ao imaginar um incidente que provoca um bombardeamento entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética.
Os anos 60 não foram nada fáceis para o cinema americano. Presenciava-se a queda do sistema de estúdios, o declínio da indústria e a necessidade de adaptação aos novos tempos e às transformações do cinema e do mundo. Havia o sonho de muitos em se tornarem independentes, de formarem suas próprias companhias produtoras, e a influência do cinema europeu que revolucionava a sétima arte naquele momento. Muitos críticos apontam essa influência como marcante em O Homem do Prego (The Pawnbroker, 1964), um dos filmes em que Lumet mais se arriscou, com sua narrativa pouco linear, entrecortada por flashbacks rápidos e sequências em câmera lenta e com talvez a melhor performance da carreira de Rod Steiger. É dos seus melhores filmes, juntamente com outro rodado na mesma época, A Colina dos Homens Perdidos (The Hill, 1965), um tenso drama num campo de prisioneiros e uma das primeiras oportunidades para Sean Connery mostrar que era grande intérprete.
Mas eram tempos complicados para os diretores norte-americanos. Lumet continuou rodando um filme por ano, mas a maioria dos seus trabalhos num determinado período sequer chegaram a ser lançados no Brasil ─ com exceção de O Grupo (The Group, 1966), frustrada adaptação de um best seller (e que marcou a estréia de Candice Bergen no cinema), e do melodrama O Encontro (The Appointment, 1969), um dos seus poucos trabalhos não realizados em Nova York. O cineasta demorou a se consolidar entre a Nova Hollywood que se instalara na época, tomada por uma geração mais jovem de barbudos, drogados e talentosos. Só voltou à antiga forma ao reencontrar Connery em O Golpe de John Anderson (The Anderson Tapes, 1971), um eficaz filme de assalto (e a estréia de Christopher Walken), e no pouco conhecido Até os Deuses Erram (The Offence, 1973). Teve a sorte de substituir John G. Avildsen em Serpico (idem, 1973), que marcou o seu primeiro encontro com Al Pacino (dez anos depois, no entanto, abandonou a oportunidade de dirigir Scarface [idem, 1983]). Frank Serpico é um detetive hippie que acha que pode varrer a sujeira do esquema de corrupção policial combatendo a desonestidade dos colegas. Serpico foi também a sua primeira bem-sucedida experiência no gênero policial (ao qual voltaria mais vezes dali em diante), no caso investigando a corrupção no meio (tema que também aprofundaria em filmes posteriores e que passaria a ser frequente em diversas séries de TV).
O ápice do diretor nessa fase foi, sem dúvidas, Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975), geralmente classificado como fita "policial”, o que, no entanto, pode estar conceitualmente equivocado, ou no mínimo ser redutor demais (o que também valeria para algumas das outras incursões de Lumet por temáticas policiais). Trata-se de um drama sobre um assalto a banco por dois anti-heróis fracassados que se transforma em uma situação insustentável, em meio à inquietação social do começo dos anos 70. Por vezes beira a tragicomédia, o que só reforça o seu sentido dramático. As imagens com Al Pacino negociando com a polícia diante das câmeras de TV que acompanham o caso e de uma multidão na frente do banco são das mais fortes que o cineasta filmou. A condição de circo e tragédia que se instaura, no entanto, beira um tom populista que não chega a incomodar, mas estaria presente de maneira mais acentuada no filme seguinte do diretor, Rede de Intrigas (Network, 1976), o seu filme mais exitoso em termos de Oscars da Academia, um retrato cínico e manipulador dos bastidores da televisão, um "filme de denúncia" disposto a revelar o sensacionalismo e o mau gosto barato do veículo, e condenar não apenas esse meio, mas também todos nós, espectadores compulsivos. A carreira de Lumet prosseguiu firme com uma das melhores versões de Agatha Christie, Assassinato no Expresso Oriente (Murder on the Orient Express, 1974), e com adaptações teatrais de resultados irregulares: Equus (idem, 1977), versão da peça de Peter Schaffer (o mesmo de Amadeus [idem, 1984]), em que a paixão de um jovem de 17 anos por cavalos o leva à loucura e a ser preso por cegar os animais, com o psiquiatra interpretado por Richard Burton tentando ajudá-lo; o fracassado O Mágico Inesquecível (The Wiz, 1978), adaptação do musical da Broadway que transpõe a história de O Mágico de Oz para o Harlem, o bairro negro de Nova York, e que sofreu com a falta de experiência do cineasta com o gênero; e Armadilha Mortal (Deathtrap, 1982), baseado em peça de Ira Levin, rodado num único cenário (a sala de uma casa isolada no extremo de Long Island), um thriller cheio de reviravoltas que remete a outro suspense genial, Trama Diabólica (Sleuth, 1972), de Joseph Mankiewicz, do qual parece uma releitura.
Deve-se preferir, todavia, o excelente O Príncipe da Cidade (Prince of the City, 1981), um dos filmes com trabalho de direção mais apurados de Lumet, e que gira em torno de um detetive em crise de consciência que leva a um passo adiante a jornada anticorrupção iniciada em Serpico bem como a outra particularidade recorrente no cinema do diretor desde os eu primeiro filme: a ética dos seus personagens. Ou o retorno aos discursos eloquentes dos tribunais no comovente O Veredicto (The Verdict, 1982), outro de seus filmes que beiram a obra-prima. Ou ainda a precisão e secura do quase documental Daniel (idem, 1983), sobre a vida adulta e problemas psicológicos dos filhos do casal de cientistas Julius e Ethel Rosenberg, mortos na cadeira elétrica na década de 50, acusados durante o macarthismo de terem passado segredos atômicos para a União Soviética. O filme faria uma bela e insuspeita sessão dupla com outro que Lumet dirigiria cinco anos depois, O Peso de um Passado (Running on Empty, 1988), que também se desenvolve em dois tempos: o passado com um casal engajado no inicio da década de 70 em grupos radicais de esquerda contra a guerra do Vietnã, e dezesseis anos depois ainda vigiados pelo FBI e fugindo pelos Estados Unidos em disfarces constantes para que já com filhos pudessem se manter existindo como uma família comum (e o filme existe justamente como uma história de cotidiano familiar em permanente vigília). Ainda assim, não se pode dizer que os anos 80 foram consistentes para Lumet, com uma mancha na carreira com o fracasso completo de Garbo Fala (Garbo Talks, 1984) e filmes de pouco fôlegos como Os Donos do Poder (Power, 1986), sobre a questão da verdade e da democracia no poder de consultores e marqueteiros na construção da figura pública dos políticos, e o fraco suspense policial A Manhã Seguinte (The Morning After, 1986). Mais interessante seria o curioso Negócios de Família (Family Business, 1989), em que duas gerações de pais e filhos protagonizam um filme de assalto e um acerto de contas familiares, o que a principio parece oposto aos personagens éticos que se sobressaem na filmografia lumetiana, mas ainda assim discutindo conflitos éticos em um golpe que unirá e dividirá os parentes próximos envolvidos. O filme não se equilibra muito bem em sua mistura de comédia, aventura, thriller de roubo e drama, mas visto em retrospecto, parece enunciar timidamente um filme maior como seria Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto, realizado duas décadas depois.
Os anos noventa foram ainda mais decadentes para o veteraníssimo cineasta, com as eventuais exceções de Q & A - Sem Lei, Sem Justiça (Q & A, 1990) e principalmente Sombras da Lei (Night Falls on Manhattan, 1997), em que mais uma vez policias se confrontam com dilemas éticos envolvendo a profissão que escolheram e que pesam em suas consciências. Não foram filmes que marcaram época quando lançados (mas que parecem crescer com o tempo, especialmente se pensados em termos de conjunto da obra na filmografia de Lumet), e o diretor àquela altura já parecia visivelmente cansado e conformado a rodar thrillers sem repercussão, como o insosso Uma Estranha Entre Nós (A Stranger Among Us, 1992) ou o desprezível remake cassavetiano Gloria – A Mulher (Gloria, 1999), ambos veículos para estrelas femininas com a carreira em declínio (Melanie Griffith e Sharon Stone, respectivamente). Em 2001, retornou para TV após quarenta anos, dirigindo episódios da série 100 Centre Street e um telefilme obscuro, Inspeção Geral (Strip Search, 2004).
Já davam a parte relevante de sua carreira como encerrada quando surpreendeu aos mais atentos no seu retorno aos cinemas com o impacto de Sob Suspeita (Find Me Guilty, 2006), um filme de julgamento em tons farsescos e iconoclastas e com gângsteres no banco dos réus (e cujos letreiros na abertura avisam que os diálogos foram quase todos literalmente reproduzidos dos autos do caso real que inspirou o filme). E o que dizer de um filme que extrai uma excelente atuação de Vin Diesel como o acusado que dispensa seu advogado e defende a si mesmo em pleno tribunal? Nada que nos preparasse para Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto, que fechou sua obra cinquenta anos depois de 12 Homens e uma Sentença, dessa vez em cima de uma tragédia familiar e história de assalto que parece conciliar duas épocas distintas do cinema presenciadas pelo próprio Lumet: uma clássica, em torno de um conto de crime e culpa que parece típico dos noir de Fritz Lang, por exemplo, com a modernidade de uma narrativa virtuosa (porém despida de truques) e cheia de idas e vindas habituais num cinema pós-Tarantino. Mas se na sua estréia o diretor terminara de maneira positiva envolta do perdão e reconciliação entre os personagens, o seu filme derradeiro encerra uma viagem rumo ao inferno em torno da queda do homem civilizado em meio a barbárie de toda uma sociedade fundada sobre o capital. E também uma última lição de mise en scène, em tempos em que a maioria de seus colegas de profissão parecem ter esquecido ou jamais aprendido alguns segredos básicos do ofício que Sidney Lumet tão bem conheceu.